“Em meio aos escombros, destroços e cadáveres que a dita polarização se efetivou em vandalismo sofisticado do ódio e da mentira, enquanto, por outro lado, o voluntariado efetivo de milhares de cidadãos procurava atuar para o mínimo bem-estar dos atingidos”

Por Pe. Alfredo J. Gonçalves*

Desde os tempos da pandemia da Covid-19 e a atitude negacionista de Bolsonaro, por uma parte, e desde as eleições presidenciais de 2022 que levaram o presidente Lula ao Palácio do Planalto, por outra, a polarização que divide o país parece não dar tréguas. Nem sequer a calamidade trágica que atingiu ao redor de 80% dos municípios gaúchos conseguiu unir a população na defesa dos desalojados e desabrigados. Mesmo no olho furioso do furacão, o gabinete das fake news (ou coisa do gênero), disparou inverdades e desinformação em todas as direções, dificultando o resgate dos ilhados pelas enchentes e o socorro generalizado às vítimas da catástrofe. Foi justamente em meio aos escombros, destroços e cadáveres que a dita polarização se efetivou em vandalismo sofisticado do ódio e da mentira, enquanto, por outro lado, o voluntariado efetivo de milhares de cidadãos procurava atuar para o mínimo bem-estar dos atingidos.

Mais grave é que a polarização tende a perpetuar-se, apontando os contornos opostos das eleições de 2022. A própria secretaria para a reconstrução do Rio Grande do Sul, criada pelo presidente Lula para fazer frente aos estragos das inundações, vem dividindo desde logo o indicado Paulo Pimenta e o governador Eduardo Leite. No horizonte, evidentemente, está a disputa por uma possível popularidade por ocasião do pleito eleitoral de outubro/24. Bem alertava o escritor americano James Freeman Clarke que “um estadista pensa nas próximas gerações, [ao passo que] um populista pensa nas próximas eleições”. Talvez resida nisso a “herança maldita” dos quatro anos de governo Bolsonaro, isto é, o negacionismo. Este rompe drasticamente com o fio de ouro da confiança entre os seres humanos.

Confiança que assegura e garante a possibilidade de laços, amizades, contratos e relações sadias e saudáveis entre pessoas, famílias, grupos e instituições. Em lugar dessa garantia confiável, impôs-se a desconfiança. E esta última penetrou de cima abaixo todas as camadas sociais, desde o próprio casamento e a família, até as associações e comunidades, desde as organizações populares até os sindicatos e partidos políticos, desde as igrejas e fraternidades até o parentesco e a amizade mais comum. Tanto que desconfiança e cancelamentos se difundiram entre esposo e esposa, pais e filhos, participantes do mesmo credo religioso, amigos e amigas de longa duração. Passou à criação de “guetos cerrados” que falam a mesma linguagem político-ideológica, ao passo que os outros são tidos como inimigos. Difundiu-se uma divisão nociva e perversa entre os “de dentro” e os “de fora’, “nós” e “eles”, os “verde-amarelo” e os “vermelhos” – onde se multiplicam as difamações, as acusações e as hostilidades recíprocas. O terreno da política em especial tornou-se campo minado, ao mesmo que contaminou outras dimensões da vida social.

A polarização exacerbada, como vimos experimentando, bloqueia o encontro, o confronto sadio e o diálogo. O bom senso e os argumentos racionais deixam de funcionar como instrumentos de aproximação e busca mútua de soluções. O viés ideológico, por vezes mesclado com as crenças religiosas, prevalece sobre toda tentativa de levantar os desafios básicos da população e procurar planos de ação a longo prazo. Talvez tenha chegado a hora de deixar de lado esses óculos político-ideológico-religioso e, com franqueza e sinceridade, perguntar onde está a verdade? Por onde podemos caminhar juntos? Não obstante as nossas diferenças, ou justamente a partir delas, quais as necessidades básicas da população brasileira? Acaso não seremos capazes de um planejamento social e ecologicamente sustentável para as gerações futuras?

Diz o filósofo alemão Feuerbach: “sabes que uma verdade nunca veio ao mundo com enfeites, com o brilho de um trono entre tímpanos e trombetas, mas que sempre nasceu na obscuridade oculta entre lágrimas e suspiros; sabes que os “bem colocados”, justamente por estarem no alto, nunca foram apanhados pela onda da história, mas sempre os que se acham no fundo” (A Essência do cristianismo, coleção Folha, pág. 33).

Assim ocorreu com a encarnação de Jesus e sua Boa Nova. É hora de deixar de lado holofotes, microfones e câmaras. Hora de abrir canais, instrumentos e mecanismos de escuta: ouvir as ruas e as praças, os porões e as periferias, os desertos e faz fronteiras. Voltar às bases, às visitas locais, ao trabalho de “formiguinha” e, a partir dos embates e desafios, anseios e esperanças, sonhos e lutas populares, elaborar um projeto de Brasil que contemple a preservação do meio ambiente, os direitos humanos e as necessidades básicas da população, em particular os setores mais pobres, excluídos e vulneráveis. A verdade nasce do chão regado de sangue, suor e lágrimas, não dos gabinetes e laboratórios.

*Assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes – São Paulo

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