Pensar o Brasil do futuro exige uma análise realista e sincera a respeito do país que tivemos no passado e o que temos no presente. A ciência filosófica de Friedrich Hegel não deixa dúvida ao afirmar que a “história repete-se sempre, pelo menos duas vezes”, somando-se ao pensamento do alemão, Karl Marx, em sua obra “18 Brumário” complementa: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Diante de um governo mais ocupado em criar factoides e desviar a atenção da corrida para o golpe que avança quase sem obstáculos cabe refazer a pergunta: vivemos a tragédia ou a farsa?
O país agoniza diante do terceiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro. Desmonte de políticas sociais; crimes contra o meio ambiente, povos indígenas e tradicionais; ameaça à democracia; promessas de crescimento não alcançadas; pandemia de Covid-19 descontrolada; carestia; declarações polêmicas e graves acusações contra ele e seus filhos. Este é, em síntese, o balanço de um governo fortemente identificado com a farsa e que atrai para seu povo uma sucessão de tragédias.
Passados mais de dois anos e meio desde o dia 1 de janeiro de 2019, o que temos em curso é a desidratação das organizações da sociedade civil, o desmonte das políticas públicas, a asfixia de qualquer tentativa de reação popular, os perigosos rearranjos das lideranças políticas que já miram os coeficientes eleitorais de 2022 e uma população que em meio à luta diária pela sobrevivência não tem tempo para perder com os assuntos do Planalto, da Câmara ou do Senado.
Será que perdemos o medo da barbárie ou já não acreditamos que podemos evitá-la? Diante do negacionismo e negligência na gestão da pandemia, onde falta vacina no braço e comida no prato, as ruas voltaram a ser ocupadas a partir do 19J, primeira de uma série de manifestações que vem ocorrendo nacionalmente em defesa da democracia e contra o governo Bolsonaro. É preciso ouvir o que as ruas estão revelando. Quem continua indo às manifestações de rua? O que se comunica nos ruidosos carros de som? Não basta apenas ir às ruas para pedir o fim do governo Bolsonaro, é preciso reativar as forças democráticas populares para questionar o sistema e mudar a lógica perversa que condena principalmente a população pobre, preta, feminina, LGBTQIA+ e periférica a todo tipo de vulnerabilidade e violência.
Partidos mais alinhados com valores que no processo histórico deram identidade política à esquerda parecem perdidos. Na tentativa de reorganizar suas rotas não conseguem superar o lugar comum, a retórica que insistem em chamar de “volta às bases”. O quadro abre espaço para a terceira via. Seria o centrão? A esquerda rearranjada? Os atos trazem potencial para mudanças estruturantes e duradouras? Porque as ruas estão esvaziadas?
Sem projeto político, a pauta eleitoral ganha centralidade e atravessa qualquer possibilidade de superação econômica e social minimamente justa. Em que e no que apostar para além das eleições?
A sociedade civil segue mobilizada. A Coalizão Direitos Valem Mais apresentou recentemente ao Congresso Nacional e à sociedade brasileira uma nota técnica com “um conjunto de propostas visando fortalecer a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual 2022, como instrumentos para o enfrentamento do dramático contexto da pandemia e de suas consequências nas condições de vida da população”.
Mas quem toma a dianteira de novo nessa corrida para abrir diálogo com o Palácio do Planalto é o conhecido “centrão” que volta a nadar de braçada, a negociar ministérios e secretarias estratégicas. A título de exemplo, a proposta da LDO prevê um aumento no fundo partidário para R$ 5, 7 bilhões. Tem dinheiro para o fundão, mas não tem para educação! Na outra ponta assistimos inertes ao fato de que institutos de pesquisas como CNPq e CAPES não conseguirem garantir o mínimo para a continuidade das pesquisas em diversas áreas da ciência.
A falta de perspectiva para um projeto capaz de colocar o Brasil de volta na rota do crescimento e com potencial para garantir vida e dignidade para todas as pessoas fica ainda mais evidente diante de fenômenos como a onda de frio que tomou as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste na última semana.
O que já é muito grave, quando temos apenas em São Paulo a estimativa de que mais de 24.000 pessoas estão em situação de rua, assume aspectos catastróficos e desumanos.
É possível considerar viável um país onde as pessoas morrem de fome, de frio, de tiro ou por falta de vacina? Cabe aqui nossa solidariedade e apoio às pessoas e organizações da sociedade civil que incansavelmente tentam amenizar o frio e a fome nas ruas, becos e vielas do Brasil. Neste cenário, voltamos a lembrar da reflexão do economista do século XIX, já citado nesta Nota, de que as novas repetições costumam fundir esses elementos em farsas que não deixam de ser trágicas, cada vez mais apresentando traços indisfarçáveis de estupidez!
Neste cenário cabe reafirmarmos o que diz o papa Francisco, “Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos”.
Não devemos! Não pagamos!
Somos os povos, os credores!
Rede Jubileu Sul Brasil, 04 de agosto de 2021