“Encontro Anual de Organizações e Alianças Regionais” reuniu membros e movimentos aliados na América Latina e Caribe

Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil

“Não há justiça socioambiental sem justiça de gênero. É preciso fazer uma leitura autocrítica das organizações latinoamericanas e do Caribe em relação aos nossos espaços organizativos porque temos dado conta que a violência exercida sobre as mulheres não tem só relação com as corporações e governos, mas também nas organizações onde há muito machismo, poder patriarcal, colonialista e extrativista”, afirmou Nancy Fuentes, da Rede Latinoamericana de Mulheres Defensoras de Direitos Sociais e Ambientais, uma das painelistas do “Encontro Anual de Organizações e Alianças Regionais” realizado no dia 1º de julho pelo Jubileu Sul/Américas.

 A reunião virtual, no âmbito da ação Protagonismo da Sociedade Civil nas Políticas Macroeconômicas, teve como foco dos debates os impactos da dívida para além da perspectiva financeira, discutindo as diferentes formas de opressão sobre os corpos, territórios, sobre a natureza e a história dos povos.

A apresentação de abertura teve como painelista Mae Buenaventura, do Movimento dos Povos Asiáticos sobre a Dívida e Desenvolvimento, que discorreu sobre o impacto da dívida no escopo da Agenda 2030.

“A dívida na vida das mulheres” foi o tema do segundo painel, com Nancy Fuentes. A Rede Latinoamericana de Mulheres Defensoras de Direitos Sociais e Ambientais articula organizações para incidência em políticas, projetos e práticas que contribuam com a defesa de direitos dos povos e da natureza em territórios impactados por projetos de mineração.

Nessa dívida ligada ao avanço extrativista que afeta as mulheres, Nancy afirma que vincular os corpos-territórios é importante para “reconhecer o corpo como primeiro território que temos como mulheres e que é afetado. Quando afetam esses corpos, afetam toda a psique, a forma de ver a vida e também é a porta de entrada para violentar nossos territórios”.

Impacto emocional

As mulheres são as primeiras impactadas como parte da estratégia de dominar porque elas são muito mais aguerridas no momento da resistência nos territórios. “É muito mais difícil corromper e quebrar a organização quando há mulheres comprometidas. Por isso essa violência é usada para afetar a organização das mulheres” e assim as corporações invadirem os territórios.

Outra questão, segundo Nancy, é que devido ao trabalho de cuidado, historicamente feminino, as mulheres se tornam responsáveis pela gestão da água (uso da água para comida, plantio, limpeza), e são as primeiras que sentem a contaminação, assim como as dificuldades quando a busca por água exige maior tempo e distância no deslocamento.

Nesse sentido, ela observa que pouco se fala do quanto as violações afetam a saúde física, mental e emocional sofrida pelas mulheres na defesa socioambiental de territórios, desde não poder dar água aos próprios filhos devido aos riscos de contaminação à necessidade de mudar, de deixar seus territórios por falta de segurança, passando por estupros e assassinato de defensoras.  “Há um impacto emocional muito forte que deve ser considerado na dívida com as mulheres”.

Ela ressaltou que há um disciplinamento patriarcal exercido sobre as mulheres que se conecta com a hegemonia dos homens, “um pacto perverso entre homens em diferentes espaços de negociação” nos quais um homem da empresa é que negocia com o homem do governo, o homem da organização é que negocia a resistência “e entre homens que decidem o que é melhor para as comunidades. Isso também faz com que as mulheres se disciplinem ao patriarcado e quase nunca estão nas mesas de negociação”, critica.

Financeirização da natureza

Isaac Rojas, da Amigos da Terra Costa Rica, foi o convidado do terceiro painel sobre “Financeirização da natureza: o papel das organizações sociais para avançar rumo à justiça socioecológica”.

Com a exibição de dois vídeos (assista no final do texto), ele explicou o processo de incorporação de conceitos mercantilistas na relação dos povos com a natureza, com uma coisificação e divisão de bens e territórios, antes unidos, para integrar os bens naturais aos mercados, gerar lucro e a expansão de uma série de atividades contaminantes produzidas para a lucratividade das corporações, a exemplo das petroleiras e outras extrativistas.

“A financeirização é colocar à venda nos mercados financeiros as funções da natureza com o objetivo de que o capitalismo em seu modelo atual siga avançando sem maiores obstáculos”, resume Rojas ao tratar da divisão artificial que também rompe com a relação cultural dos povos com a natureza, tornando-a algo alheio, externo e distante para que as  empresas tenham autorização de exploração.

Como mensurar o valor cultural, histórico e social de uma floresta, para além de seu valor econômico? “É algo impossível com valoração econômica, por isso se está dividindo de forma artificial o componente cultural da relação dos povos com a natureza. É permitir que um determinado ecossistema possa ser destruído em troca de dinheiro para comprar outro ecossistema para conservá-lo ou restaurá-lo e que pode estar em qualquer lugar do mundo”, alerta.

Entre outros impactos da financeirização, Rojas pontuou as violações de direitos humanos e a perda da autodeterminação, e que a questão cultural e espiritual são fundamentais no enfrentamento travado pelas organizações.

“São importantíssimas porque também ajudam a proteção da relação dos povos e a natureza, por exemplo em convenções internacionais que protegem o conhecimento tradicional, com o Estado reconhecendo sua importância. Esse conhecimento não pode ser protegido sem que o território também seja, é um conhecimento vivo que existe nos territórios. É algo a ter em conta em demandas legais e junto aos governos, é uma ferramenta que ajuda a dar mais peso à necessidade de contar com direitos coletivos nos territórios”, ressaltou. 

 “Se não temos território não temos direito à terra, e se não temos esse território não temos direito de autodeterminação, de poder decidir sobre as atividades nos territórios”, completa.

Água não se vende

Da Rede de Ambientalistas Comunitários de El Salvador (RACDES), Adela Bonilla compartilhou a experiência de luta e mobilização da Aliança Nacional contra a Privatização da Água, da qual a RACDES faz parte.

“O que fizemos foi nos juntarmos e nos organizarmos. Todas as alianças ambientalistas e as redes fizemos uma reunião com o objetivo único de que a água do país não fosse privatizada”, afirma Adela, explicando que o movimento surgiu em abril de 2018, num contexto de eleições presidenciais em que a extrema direita queria interferir na elaboração de um projeto de lei para proteção de água.

O movimento fez uma primeira mega marcha em 16 de julho de 2018, quando a aliança se apresentou ante à população salvadorenha numa mobilização autoconvocada.

“Percebemos que a população era sensível ao tema. A partir dali começamos a trabalhar em busca de alianças na assembleia legislativa para poder interferir por uma lei geral de proteção de águas, pois a gestão de águas seria metade pública e metade privada, era como deixar lobos cuidando das galinhas, e a aliança passou a defender de que deveria ser totalmente pública”, pontua.  Graças à pressão da Aliança, foi retirado do projeto de lei um artigo aprovado pela assembleia legislativa que abria brecha para que o controlador de gestão de águas fosse por consórcios de empresas privadas.

Estudando os pontos prejudiciais da proposta de lei do governo, a Aliança apresentou uma proposta de lei com a perspectiva das organizações dos movimentos sociais, além da defendida pelo governo, e definiu pontos inegociáveis na elaboração da legislação, entre os quais: que a lei enfoque a água como um bem público e garantido pelo Estado; o enfoque de direitos humanos, para garantia de acesso por todos à água de qualidade e em quantidade suficiente para uma vida digna; que as águas residuais sejam tratadas para não contaminar, gestão sustentável das bacias hidrográficas e uma lei de bacias hidrográficas que trate da questão da água considerando as especificidades de cada região do país.

Ainda na visão da Aliança, o Estado é quem garante a água, mas é a sociedade civil organizada a que sabe da situação dos seus aquíferos, que vive às margens dos rios, são os que sabem e acompanham as mudanças que têm acontecido nos territórios.

“A água não vem da torneira, da mangueira, sai dos aquíferos e dos diversos ecossistemas onde a água está”, ressalta Adela. Por isso, a Aliança defende um conselho consultivo com a participação de diversas organizações da sociedade civil, que também terá representantes dos sindicatos, da academia, do movimento de mulheres, das empresas privadas, dos ambientalistas e outros segmentos – uma lei de bacias hidrográficas porque a água não é a mesma nas diferentes regiões do país.

Segundo Adela, apesar do primeiro artigo do projeto de lei priorizar a água ao consumo humano, há outros artigos que definem o contrário, com autorizações de uso de 30 anos “numa privatização disfarçada de concessão ou autorização”, sempre com a mercantilização dos bens públicos, que são do povo e para o povo. Por isso, outro ponto inegociável é a prioridade ao consumo humano da água e com equidade, com o uso doméstico prioritário para a administração, visando impedir que empresas como a Coca-Cola se instalem numa região do país “para usar a água que é pura, depois acaba contaminada pela corporação que se transfere para outro espaço e prossegue com a mesma exploração onde há água pura”, critica.

“Precisamos de água para viver e não só para os seres humanos, mas para todos os ecossistemas, para poder ter um meio saudável e equilibrado. Sem água não há futuro.  A água não se compra e não se vende, se cuida e se defende. Seguimos em luta na Aliança Nacional contra a Privatização da Água”, concluiu.

O encontro anual contou com a participação de organizações do Jubileu Sul/Américas de sete países: Argentina, Brasil, Cuba, El Salvador, Equador, Haiti e Nicarágua.

Assista os vídeos sobre financeirização da natureza apresentados por Isaac Rojas no terceiro painel do encontro:

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