Num país em que quase 120 mil mortes causadas por uma única doença, em poucos meses, não são suficientes para sensibilizar os órgãos de Estado a promoverem políticas que garatam direitos, a afirmação “Vida em primeiro lugar” é um grito necessário para reivindicar a necessidade de proteção à vida como prioridade absoluta.
É nesse contexto de avanço não apenas das mortes pela Covid-19, mas de uma ação estatal que se alinha com o que o filósofo Achille Mbembe chama de necropolítica – a política que orienta quem tem o direito a viver e quem deve morrer – que adquire ainda mais importância o Grito dos/as Excluídos/as, conjunto de mobilizações populares permanentes, que ocorrem no Brasil desde 1995, e culminam em atos durante a semana da Pátria e em especial no 7 de setembro.
Com o lema “Basta de miséria, preconceito e repressão. Queremos trabalho, terra, teto e participação”, a 26ª edição do Grito foi apresentada numa coletiva de imprensa realizada pelas redes sociais na tarde desta quinta-feira (27).
Coordenadora do Grito dos Excluídos e membro da secretaria executiva da Rede Jubileu Sul Brasil, Rosilene Wansetto explicou que a escolha do lema se deu a partir da conjunção de reflexões feitas na Campanha da Fraternidade e da análise da conjuntura nacional. “O Grito é um processo que se constrói no dia a dia e desde o início de fevereiro, quando começamos a nos reunir, já percebíamos que temos um governo conduzido por um genocida e fascista, que age contra a vida”, afirmou.
Expressando solidariedade com as famílias das vítimas do novo coronavírus, Rosilene enfatizou que “muitas dessas vidas poderiam ser poupadas se tivéssemos um governo responsável, mas o que temos é um desgoverno”.
Para Dom Mário Antônio da Silva, 2º vice-presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e presidente nacional da Cáritas Brasileira, mais do que discurso, o direito à vida precisa, cada vez mais, retornar como ação concreta ao seu posto de maior importância. “Tem gente que não coloca a vida em primeiro lugar. É triste quando coloca em primeiro lugar o lucro, o dinheiro, a fama, o sucesso. Isso quando não fica em primeiro lugar a injustiça, a tirania, a violência, a indiferença, o preconceito. Tem muita coisa ocupando um lugar que não merece”, enfatizou.
Vozes e rostos que gritam
Durante a coletiva, o bispo Dom Mário, que atua na Diocese de Roraima, ressaltou que o Grito permanece necessário porque “há vozes reais e concretas sendo abafadas, oprimidas e pessoas excluídas… os gritos têm rostos, são encarcerados/as, povo em situação de rua, comunidades tradicionais, trabalhadoras e trabalhadores em serviços precarizados, comunidades das periferias das grandes, médias e pequenas cidades, migrantes e muito mais gente que têm gritos reais”.
As vozes e rostos de que fala Dom Mário são de brasileiras e brasileiros que têm sido constantemente vítimas de uma sistemática negação de direitos que tem como consequências o aumento da pobreza extrema, da miséria e das desigualdades e violências sociais, raciais e de gênero.
Registrando dados ainda antes da pandemia, a mais recente Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio, do IBGE, revelou que aproximadamente 170 mil pessoas entraram para a pobreza extrema no Brasil. Organizações de direitos humanos nacionais e internacionais têm alertado que, como resultado da desassistência dos órgãos públicos aos segmentos mais vulnerabilizados, há uma forte tendência de aumento dessa situação pós-pandemia.
Segundo Roselaine Mendes, do Movimento Nacional de Catadores Recicláveis, a opção de muitos governos no período de pandemia tem sido justamente de aprofundamento das desigualdades. “Enquanto saíram várias linhas de créditos para empresas, não se vê apoios para associações e cooperativas”, criticou.
Conhecida como Neguinha, a representante do MNCR denunciou que, sob a justificativa de que o vírus poderia contaminar os catadores e catadoras, diversos municípios têm desrespeitado direitos dessa categoria, como a regularização das associações, a destinação de galpões dignos, equipamentos, dentre outros. Neguinha ressaltou que “os catadores sempre estiveram nos graus máximos de risco, não apenas no momento de crise”, sendo fundamental, portanto, iniciativas de proteção a esse segmento.
O Grito é denúncia e anúncio
De acordo com Rosilene, do Jubileu Sul, o Grito é uma mobilização construída em dois movimentos complementares, “denunciar as desigualdades e opressões e anunciar a esperança, as alternativas e as saídas”. Por isso, “o lema fala em basta de miséria, preconceito e repressão e, ao mesmo tempo, diz que queremos trabalho, terra, teto e participação”, reiterou.
Nesse sentido, Rosilene denunciou a violência de Estado contra povos e comunidades tradicionais, a exemplo do recente despejo de famílias do quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, e da decisão judicial de despejo do povo indígena Pataxó, em Porto Seguro, na Bahia. “Devemos dizer não às reintegrações de posse e aos despejos que deixam várias famílias sem casa e sem terra e também lutar por uma sociedade que garanta direitos”, defendeu.
Avaliação semelhante foi feita por Cleiton Gomes da Silva, da Confederação Nacional dos/as Trabalhadores/as em Educação (CNTE). Para ele, “é absurdo um governo que coloca mais recursos para as Forças Armadas do que para a educação, que congela salários de funcionários públicos no meio de uma pandemia, que diz não ter recursos para ajudar a população mais pobre”.
No centro das discussões do país, a saúde pública é outra área que as entidades organizadoras do Grito dos/as Excluídos/as entendem como prioritária em termos de denúncia e anúncio. Ao criticar o fato de o Governo Federal ter executado menos de 50% do orçamento para o combate ao coronavírus, Rosilene salientou que “o SUS é a política pública que tem salvado vidas”.
Ainda durante a coletiva de apresentação do Grito dos/as Excluídos/as, Rosilene falou sobre a Campanha A Vida acima da Dívida, lançada em julho passado na América Latina e Caribe, coordenada pelo Jubileo Sur/Américas, e que no Brasil vai trazer a memória dos 20 anos do Plebiscito Popular sobre a Dívida Externa.
“Estamos completando 20 anos do primeiro plebiscito popular, uma grande pedagogia popular, que teve a participação de mais de seis milhões de pessoas. Então, é momento também de fazermos memória dessa construção que o Grito faz parte”, disse Rosilene.
Mobilizações em curso
Em diversas partes do país, atividades alusivas ao Grito dos/as Excluídos/as já estão sendo realizadas, especialmente no dia 7 de cada mês, definido este ano como Dia D do Grito.
Em Belém, por exemplo, respeitando o distanciamento social e garantindo o uso de máscara pelos participantes, uma manifestação ocorreu em frente à Basílica de Nazaré.
Também na região Norte, em Manaus, atos públicos na Praça Matriz e no antigo Porto das Balsas foram organizados por pastorais sociais e movimentos populares.
Em outros locais, como Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Bahia uma série de debates online sobre o tema e lema do Grito estão acontecendo ou já programados para os próximos dias.
Confira a o vídeo da coletiva de imprensa: