Foto: Andressa Zumpano/Articulação das Pastorais do Campo

Paulo Victor Melo | Especial para o JSB

“A pandemia foi apenas um dos gatilhos para demonstrar a crise social e econômica coletiva que existia no mundo inteiro. Nesta quarentena vimos uma política pública agonizante que só olhava para a economia das grandes corporações transnacionais e para um certo grupo de elite do poder”.

A contundente afirmação sobre como a Covid-19 descortinou e aprofundou as desigualdades na América Latina e Caribe é de Patrícia Tuqueres, perita comunitária especialista em investigação e defesa da natureza, integrante da organização Acción Ecológica, sediada no Equador. Para ela, no contexto da pandemia, os povos indígenas, nacionalidades, comunidades afrodescendentes e outros povos tradicionais “ficaram órfãos”.

Tuqueres é quéchua do povo indígena Otavalo, originário das montanhas de Imbabura, pertencente à comunidade San Juan de Inguincho, na área rural de Quinchinche, a 114 km de Quito, capital equatoriana.

Assim como o território que Tuqueres integra, os mais de 900 povos indígenas da região – dado estimado pelo Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas na América Latina e Caribe (FILAC) – denunciam a ausência de políticas públicas por parte dos governos nacionais para a prevenção e enfrentamento ao coronavírus em áreas habitadas por indígenas, o que teve como consequência o agravamento das vulnerabilidades.

“Nesta pandemia, não estamos todos no mesmo barco, estamos no mesmo mar; uns em iates, outros em lanchas, outros em coletes salva-vidas e outros nadando com todas as forças”. A metáfora utilizada em um comunicado de sete organizações indígenas de Hidalgo, no México, é bastante precisa neste sentido.

A estrutural situação de precariedade e concentração urbana dos serviços de saúde já são, em si, alguns indicadores da caracterização dos problemas. Conforme mencionado em documento do Observatório da América Latina, “os sistemas de saúde dos países da América Latina já são caracterizados por serem fracos e fragmentados, que não conseguem garantir o acesso universal para a população. Ainda tendem estar geograficamente centralizados, com serviços e médicos especializados concentrados nos grandes centros urbanos”.

Não bastassem os obstáculos à garantia de acesso aos sistemas de saúde, diversos Povos Indígenas da América Latina e Caribe têm sido vítimas de um conjunto de violações de direitos e de negação a serviços básicos.

Violações de direitos

Alguns dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do FILAC ajudam na compreensão deste cenário: a taxa de informalidade na população indígena da América Latina e Caribe é 82%; 30% das famílias indígenas da região vivem em situação de extrema pobreza; quase 20% dos Povos Indígenas da América Latina e Caribe não têm acesso à eletricidade e, em alguns países, até mesmo o direito à água é negado (no Panamá, por exemplo, 36,4% dos indígenas não têm acesso à água).

Algumas situações país a país também evidenciam o contexto. A título de exemplo, vale citar a invasão de grileiros e madeireiros em territórios dos Povos Guajajara e Wazayzar, do Brasil. Importa ressaltar que, desde 2015, mais de 50% da cobertura vegetal desta área foi perdida por desmatamentos e incêndios florestais, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

No Peru, de acordo com informações do FILAC, um derramamento de petróleo nas águas do rio Corrientes, proveniente de uma instalação da empresa Pluspetrol, contaminou a água utilizada por 19 comunidades indígenas.

Na Bolívia, 64 comunidades do Território Indígena do Parque Nacional Isiboro Sécure denunciam a falta de informações e medicamentos e relatam que não há sequer “ambulâncias ou meios de transporte para levar uma pessoa doente ao hospital”.

Na Colômbia, um dos países latinoamericanos com maior presença de Povos Indígenas, a violência letal contra estes grupos é parte do projeto de governo, visto que, conforme registros da organização Indepaz, mais de 170 líderes indígenas já foram assassinados pela ação armada do presidente Iván Duque e de grupos paramilitares.

E no Paraguai, um levantamento da entidade Tierra Viva aponta que mais de 65% dos Povos Indígenas estão na pobreza e mais de 30% na extrema pobreza, além de enfrentarem o descaso estatal em relação à Covid-19.

Todos esses exemplos, de práticas implementadas por governos e empresas, sinalizam para um perigo de maior devastação ambiental. “Neste tempo de quarentena foi dado um pequeno descanso à mãe terra, embora no momento os governos para supostamente sair da crise tenham começado com um nível de mineração e exploração de petróleo não visto há 15 anos, nossos parques e nascentes estão em perigo, estamos ficando sem ar e água, líquido vital para poder viver e poder viver”, frisa Tuqueres.

Povos Indígenas como protagonistas da justiça socioecológica

A indígena quéchua critica também as medidas que são travestidas de preocupadas com a questão ambiental, mas que, em verdade, não alteram a lógica de destruição. “Isto é o que o governo não entende e acredita que um punhado de billetes verdes [espécie de reconhecimento metas de “desempenho ambiental”] mudará a vida dos seres vivos e isto não é o caso. Se continuarmos a destruir mais não teremos mais um planeta para viver e nossas novas gerações não terão mais ar para respirar. Os billetes verdes apenas estão trazendo fome, miséria, individualismo e violência para nossas comunidades”, enfatiza.

Na contramão desta perspectiva mercantilista sobre o ambiente e os territórios, Tuqueres acredita que os caminhos para a garantia da justiça socioecológica já são construídos há séculos pelos Povos Indígenas.

“Muitas pessoas das cidades voltaram para o campo para cultivar e cuidar da terra da qual haviam desistido porque buscavam um futuro melhor e, neste tempo de pandemia, perceberam que a Mãe Natureza deve ser amada, cuidada e protegida porque é o único lugar onde podemos viver (…). Os povos e nacionalidades têm sido herdeiros dos cuidados da mãe terra e de todos os seres que estão em seu contexto, protetores das divindades sábias que aprendemos com nossos avós e avôs caminhando, cozinhando, caçando e fazendo remédios perto do fogo”, indica.

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