Fórum internacional do Jubileu Sul/Américas debateu impactos, resistências e caminhos ao embate contra o sistema de endividamento do FMI na América Latina e Caribe
Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil
A Rede Jubileu Sul/Américas realizou no último dia 15 o fórum virtual Na América Latina e no Caribe: povos em pé contra o FMI e a desigualdade, debate que reuniu participantes da Argentina, Brasil, Cuba, El Salvador, México, Nicarágua, Peru e Trinidad e Tobago, entre outros países. No centro da pauta, os impactos provocados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o endividamento imposto aos países do Sul global, modelo responsável pela situação de exploração, fome, miséria e diversas violações aos corpos e territórios. A atividade é parte da programação da ação global contra a dívida, iniciativa integrada pelo JSA e o Jubileu Sul Brasil junto a centenas de organizações mobilizadas neste mês de outubro (saiba mais).
No início da atividade, com mediação de Kandis Serbro, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores em Campos Petrolíferos de Trinidad e Tobago, foi apresentado um vídeo em homenagem ao africano Thomas Sankara (assista no final do texto), presidente de Burkina Faso, assassinado em 15 de outubro de 1987. Líder revolucionário, Sankara denunciou o problema do endividamento causado pelas instituições financeiras internacionais e foi o primeiro governante africano a romper com o FMI defendendo o não pagamento da dívida externa, que considerava uma forma de domínio pós-colonial.
“A dívida não pode ser paga, primeiro porque se não pagarmos, os credores não morrerão. Isso é de certeza. Mas se pagarmos, vamos morrer”, criticou em seu discurso na cúpula da Organização da União Africana, na Etiópia, meses antes de seu assassinato.
Coordenadora geral da Rede Jubileu Sul /Américas, a socióloga Martha Flores destacou a atualidade do discurso de Sankara e importância de seu embate, que é referência também nas lutas pela vida para além do continente africano. “Hoje mais do que nunca o nosso lema – “não devemos, não pagamos” porque somos os povos os credores – tem mais sentido num momento em que o sistema heteropatriarcal capitalista vem se fortalecendo e também aprofundando esses mecanismos de opressão”, afirmou.
Uma das fundadoras das Mães de Maio, a argentina Nora Cortiñas fez sua intervenção chamando os mais jovens a criar novas propostas na luta contra o pagamento da dívida e o FMI, e alertou para o drama e os males que o endividamento representa para os povos que sofrem com a pobreza e impactos até na saúde mental devido ao endividamento. “Queremos algum método para dizer que não temos que pagar o que é uma trapaça, não temos que pagar uma dívida que não contraímos. Vamos em frente!”, disse a histórica militante.
Não é dívida a ser honrada, é roubo, golpe e trapaça
Painelista convidada, a economista Beverly Keene, coordenadora do Diálogo 2000, falou sobre a situação argentina, as resistências no país e também das falsas soluções e armadilhas do FMI na América Latina e Caribe. Fundadora do Jubileu Sul Argentina, Beverly também defendeu não só a luta permanente contra o pagamento e o sistema de dívida que não são devidas, mas também a importância da transformação do mundo e da vida “porque nós, os povos, e a natureza merecemos muito mais e muito diferente”.
Segundo Beverly, além da atuação do FMI e do Banco Mundial para defesa dos interesses de seus controladores do Norte global, os movimentos de luta contra o endividamento nos países têm o desafio de enfrentar as interferências das instituições financeiras internacionais nos parlamentos. Como exemplo, ela apontou o caso do Haiti e da Argentina, onde o FMI financiou mudanças na legislação para fazer avançar a exploração pelas mineradoras.
Para a economista, além de moralmente impagável, o sistema de endividamento também deve ser rechaçado por suas consequências políticas aos países submetidos às dívidas. No caso da Argentina, desde que o governo Macri assinou acordo com o FMI para um dos maiores empréstimos da história do país, em junho de 2018, o resultado foi que a taxa de pobreza cresceu de 25% para 33% até o final da gestão do presidente neoliberal e isso antes mesmo do início do pagamento ao Fundo. “Eduardo Galeano, grande voz da nossa América, disse em poucas palavras: ‘mais pagamos, mais devemos, menos temos’. Essa é a realidade matemática desta dívida”, pontua.
Beverly destacou que a crise de endividamento dos povos é muito diferente da “crise” dos que emprestam recursos, sendo necessário separar os cenários para tratar das crises enfrentadas pelos países impactados por esse sistema. Quanto às resistências dos povos e territórios, a economista compartilhou a experiência argentina da Auto Convocatória para a Suspensão de Pagamentos e Investigação da Dívida (leia mais), iniciativa que há quase dois anos, além do Diálogo 2000, une diversas outras organizações, movimentos e coletivos de trabalhadores, aposentados, feministas, povos originários, juventudes, defensores de direitos humanos e ambientalistas.
“Não é um espaço onde um convida o outro, mas onde todos tomam a iniciativa e nos auto convocamos pela suspensão do pagamento e investigação da dívida porque sabemos que essa dívida é ilegítima, odiosa e em muitos casos até ilegal nos termos da lei”. Quanto aos setores que consideram que as dívidas precisam ser honradas, Beverly ressalta:
“Isso não é uma dívida, isso é uma farsa e não há nada o que honrar. Temos uma trapaça para exigir restituição que é equivalente ao roubado com base neste golpe, esse é o esforço para colocar em primeiro plano”, completa.
Mais do pior: FMI é o problema, não a solução
O economista Alberto Acosta, ex-ministro de Minas e Energia do Equador e ex-presidente da Assembleia Nacional Constituinte do país, falou sobre “O FMI na região: impactos, estratégias, perspectivas”. Acosta fez uma breve análise do cenário atual, resgatou o contexto de surgimento do FMI e apontou criticamente como o Fundo tem atuado em meio à crise internacional da Covid.
Segundo o economista, em 2019 havia sinalização de piora na crise econômica, social e ambiental, na qual o tema da dívida externa dos países era algo que já devia ter sido resolvido, e que o quadro foi agravado pela pandemia, mas que não é somente resultado da Covid e sim um problema estrutural.
Sobre a atuação do FMI diante da crise, Acosta criticou o fato de que os 50 bilhões de dólares liberados durante a pandemia chegaram aos países mais ricos e não aos mais pobres porque os recursos foram repassados de acordo com as cotas de participação no Fundo – isso mesmo depois da diretora-gerente da organização, Kristalina Georgieva, ter afirmado que a medida era “o melhor uso de dinheiro público que veremos em nossas vidas”. No caso da Argentina, por exemplo, menos de 1% dos recursos chegaram ao país.
Além disso, o Fundo segue a serviço da banca internacional e do imperialismo estadunidense, impondo condicionantes e políticas de ajuste do capital transnacional aos países tomadores de empréstimos que precarizam ainda mais a situação dos povos e territórios para pagar a dívida, afirma o economista, resumindo: “o FMI é parte do problema, não a solução para os países da América Latina e Caribe”.
Economia a serviço do ser humano e em equilíbrio com a natureza
Na visão de Acosta, “se continuarmos na lógica do FMI, não será mais do mesmo, será mais do pior. Seguiremos vendo como a busca por crescimento econômico vão dar não só problemas ambientais e sociais, o produtivismo e o individualismo. Essa tendência do momento vai modular um processo de desumanização da humanidade e de desnaturalização da natureza”. E o que fazer frente a essa situação?
Segundo o economista, assim como Thomas Sankara já pontuava, buscar o não pagamento e o cancelamento da dívida externa não é suficiente. Acosta afirma que é preciso mudar a política interna dos países para que não estejam atrelados ao mercado mundial, mas com uma economia voltada ao povo.
“Para as nossas próprias populações está a mensagem de que devemos começar a pensar a economia a serviço do ser humano, mas que esteja em sintonia e equilíbrio com a natureza, uma espécie de código financeiro internacional para fluxos financeiros que não podem ser controlados em Nova York, Londres. Eles têm que estar a serviço dos seres humanos”, ressaltou.
Por fim, Acosta também defendeu que se exija o fim do FMI e do Banco Mundial, mecanismos de redução de fluxos especulativos para fazer desaparecer os paraísos fiscais, além de um tribunal para julgar a dívida externa e os responsáveis pelos processos que geraram fome, miséria e destruição nos países.