Articuladora da Rede Jubileu Sul Brasil fala sobre temas que estarão em debate durante curso em parceria com a editora Boitempo.
“Nós vimos que morreram quase 700 mil pessoas e a economia está em frangalhos. Então a dicotomia não é vidas x economia!”. De forma cirúrgica, Sandra Quintela, economista e articuladora da Rede Jubileu Sul Brasil, enfatiza que a pandemia de Covid-19 não gerou uma crise nova, mas agravou e mostrou de forma cristalina o modo de funcionamento do sistema capitalista.
Quintela entende também que a ampliação das desigualdades em todo o mundo – aprofundada nesse período de pandemia – é parte de um sistema sustentado pela exploração da força de trabalho e da natureza. “É imprescindível ao funcionamento do capitalismo essa drenagem dos recursos, essa ‘alavancagem’ dos recursos dos empobrecidos para os enriquecidos, tanto dos países periféricos para os países centrais quanto internamente nos países periféricos para os donos do poder”, diz.
A economista ressalta ainda o papel central da dívida pública na ampliação das desigualdades e na lógica de financeirização da vida. “A dívida é como se fosse o cartão de crédito dos ricos. Todas as vezes que estoura a conta, recorrem à dívida, recorrem aos Estados nacionais (…) a origem dessa concentração na mão de poucos está na dívida pública, porque é ela que alimenta o capital financeiro”, afirma.
Para Quintela, é essencial que o conjunto da sociedade compreenda o tema da dívida pública, afinal “quando falamos em dívida pública, estamos falando em dinheiro público. Pode ser a dívida externa, dívida interna, em moeda estrangeira, em moeda nacional, mas é dinheiro público. E que poderia, por exemplo, ir para a reforma agrária, para moradias populares, para escolas, creches, mas ao invés de ir para tudo isso vai para remunerar o capital financeiro”.
É para contribuir nesse entendimento coletivo sobre a dívida pública que a Rede Jubileu Sul Brasil e a Editora Boitempo realizarão, neste mês de fevereiro, o curso “Luta de Classes e Financeirização: o papel da dívida”, que será gratuito e aberto a qualquer pessoa interessada.
Confira abaixo a íntegra da entrevista concedida por Sandra Quintela, articuladora da Rede Jubileu Sul Brasil e uma das professoras do curso, a Paulo Victor Melo, jornalista da Rede Jubileu Sul Brasil.
“Desigualdade mata”. Esta foi a conclusão de um recente relatório publicado pela Oxfam sobre o assustador aprofundamento das desigualdades durante a pandemia. A título de exemplo, os 10 homens mais ricos do planeta dobraram suas fortunas desde o início da crise sanitária da Covid-19. Por outro lado, nesse mesmo período, mais de 160 milhões de pessoas entraram na linha de pobreza em todo o mundo. O que esses números dizem não apenas sobre desigualdade, mas sobre o modo de funcionamento do sistema capitalista?
Sandra Quintela: Há uma interface entre riqueza acumulada e desigualdades. No modo de produção capitalista, os recursos materiais são drenados de maneira sistemática para o andar de cima, para esses que são os mais ricos do planeta e as corporações que dominam o circuito de produção nas diferentes áreas.
É imprescindível ao funcionamento do capitalismo essa drenagem dos recursos, essa “alavancagem” dos recursos dos empobrecidos para os enriquecidos, tanto dos países periféricos para os países centrais quanto internamente nos países periféricos para os donos do poder desses mesmos países. É da natureza desse sistema extrair riqueza e transferir para os de cima, a partir da exploração da força de trabalho e da natureza.
Nesse novo estágio da pandemia, com circulação de novas variantes, recordes de contaminação e ampliação das mortes, não temos visto o que, no início da doença, parecia ser uma preocupação de determinados gestores públicos. A lógica da financeirização da vida ganhou terreno sobre a ideia de que as vidas importam mais que a economia?
Sandra Quintela: Nós vimos que aqui no Brasil morreram quase 700 mil pessoas e a economia está em frangalhos. Então a dicotomia não é vidas x economia. Temos visto como a questão da vacina serviu para enriquecer as corporações farmacêuticas, a exemplo da Pfizer, que tem lucrado bilhões de dólares com a venda de vacinas. É a lógica do lucro sobre a vida, a lógica de que os ganhos financeiros não podem cessar.
Então, o que continua imperando com ou sem pandemia é o lucro sobre a vida. E a pandemia veio não para trazer a crise, mas para aprofundar e mostrar de forma cristalina o funcionamento do sistema capitalista. Só não vê quem não quer.
Segundo dados do FMI, a dívida pública global saltou para um recorde de 99% do PIB mundial e representa agora quase 40% do total da dívida de todo o mundo, o que representa o maior percentual desde meados dos anos 1960. Qual tem sido o papel da dívida pública no aprofundamento das desigualdades e na financeirização da vida?
Sandra Quintela: A dívida pública é o que sustenta os bancos, as grandes corporações, num momento de crise. Em 2008, na crise imobiliária nos Estados Unidos, quem sustentou os bancos e os fundos de investimentos foi a dívida pública, foram recursos dos Estados nacionais, que jogaram uma quantidade enorme de títulos para segurar essas instituições, enquanto milhares de famílias perderam as suas casas. E aí, ao invés de garantir moradia para as famílias trabalhadoras, os Estados pagaram para os bancos e se endividaram.
A dívida é como se fosse o cartão de crédito dos ricos. Todas as vezes que estoura a conta, recorrem à dívida, recorrem aos Estados nacionais. Essa ideia do Estado mínimo é apenas para as políticas sociais, porque o Estado é máximo para os bancos e os bilionários.
A origem dessa concentração na mão de poucos está na dívida pública, porque é ela que alimenta o capital financeiro, que lastreia as operações do capital que se baseia nos títulos da dívida pública.
Como as classes trabalhadoras mais empobrecidas – especialmente mulheres negras, populações negra e indígena, povos tradicionais – têm sido afetados ao longo da história pela questão da dívida pública?
Sandra Quintela: Em primeiro lugar, quando falamos em dívida pública, estamos falando em dinheiro público. Pode ser a dívida externa, dívida interna, em moeda estrangeira, em moeda nacional, mas é dinheiro público. E que poderia, por exemplo, ir para a reforma agrária, para moradias populares, para escolas, creches, mas ao invés de ir para tudo isso vai para remunerar o capital financeiro.
Quando você quer matricular o seu filho na creche e não tem vaga, quando você quer emprego e não tem, quando a inflação está alta do jeito que está, tudo isso tem a ver com a falta de investimento público. E o investimento público é feito com dinheiro público, mesmo quando ele contrai recursos por empréstimo.
Só que, no caso do Brasil, o dinheiro que é pego emprestado não é para fazer investimento, é para pagar dívida. Ou seja, o Estado se endivida para pagar dívida. E cada vez que uma dívida financeira é paga, uma dívida social deixa de ser paga.
E o que é dívida social? É a falta de terra, falta de moradia, falta de emprego, é a ausência de saneamento, a falta de leitos hospitalares, tudo isso. Ou seja, questões que afetam diretamente a vida das pessoas.
E como o cenário de subsunção financeira e de uberização e precarização em larga escala do trabalho contribui para a manutenção deste cenário?
Sandra Quintela: O mundo do trabalho é a área que está sentindo mais fortemente os efeitos da crise global, pela precarização, pelo desemprego, pela falta de oportunidades, por uma juventude que não está nem trabalhando nem estudando.
E com a uberização, em que você não vê o patrão e em que essa relação de exploração não fica diretamente evidente, fica muito mais difícil a organização para a reivindicação de direitos e melhoria das condições de trabalho, porque essas relações de opressão ficam subsumidas.
E, nesse sentido, é fundamental combatermos a ideia de colaboração, porque a opressão existe, afinal se você ficar doente e não puder dirigir o seu carro, você não vai receber um real sequer.
Além disso, devemos lembrar que essas empresas – da chamada economia de plataforma – estão sediadas fora do Brasil, o que agrava ainda mais o cenário e só afunda o buraco, tanto no sentido do trabalhador, que tem dificuldade em se entender enquanto explorado, quanto do país como um todo, porque esses recursos não ficam aqui.
E quais devem ser, em seu entendimento, as prioridades da luta política das trabalhadoras e trabalhadores – e suas organizações – em nível global para a reversão desse cenário?
Sandra Quintela: Como educadora popular e parte de uma rede, a Rede Jubileu Sul Brasil, que acredita na educação popular, compreendo que a formação política, a organização desde baixo e a nossa localização enquanto classe trabalhadora são vitais para a mudança desse cenário.
Precisamos primeiro nos entender enquanto classe trabalhadora, nos organizarmos enquanto tal e termos uma compreensão profunda dos desafios que estão colocados hoje.
Além disso, é fundamental avançarmos na organização para gerar consciência classe, para promover o pensamento crítico, enquanto passo determinante para o enfrentamento e superação desse terrível momento que passa a humanidade.
Veja AQUI a programação do curso que terá a primeira aula no dia 14 de fevereiro de 2022