Na declaração final da Conferência de Soberania Financeira, realizada de 23 a 25 de outubro em São Paulo, participantes cobram “mudanças profundas nas políticas e estruturas que sustentam esta lógica de exploração, endividamento, pilhagem e dominação (…), rumo a modos de vida baseados na democracia ativa, na justiça e na autonomia do povo para recuperar o sentido coletivo da vida”

Por Redação – Jubileu Sul Brasil

As organizações e movimentos populares participantes da Conferência Internacional “Soberania Financeira: Dívida, Exploração e Resistências”, realizada na capital paulista, divulgam a declaração final resultado do encontro realizado de 23 a 25 de outubro, numa iniciativa da Rede Jubileu Sul/Américas (JS/A), do Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM-AYNA) e do Conselho de Educação Popular da América Latina e do Caribe (CEAAL).

O encontro teve como objetivo promover pensamento crítico, estratégias e alternativas ao sistema de endividamento causado por organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial para explorar riquezas, impor a agenda neoliberal e interferir na soberania dos países do Sul global. Ao longo dos três dias de debates, houve troca de experiências, propostas e resistências em curso nos territórios de 16 países da América Latina e Caribe.

Na declaração final da conferência, as organizações e movimentos denunciam “o sistema de dívida perpétua, juntamente com o sistema corporativo de comunicação, como uma das ferramentas centrais do processo histórico de dominação, pilhagem e dependência, que continua a se expandir e a se aprofundar de múltiplas formas”. Entre outros, ressaltam que “os povos explorados e saqueados do Sul que devemos nos assumir como sujeitos históricos com capacidade de levar a cabo estas lutas para transformar as nossas realidades, e construir alternativas de soberania e de bem viver”.

Confira a íntegra da declaração (disponível para download no final do texto):

“Reunimos em São Paulo, de 23 a 25 de outubro de 2023, membros de organizações, articulações e movimentos populares de 16 países da América Latina e do Caribe, para trocar realidades, desafios, alternativas e propostas em torno da Soberania Financeira, da Dívida, da Exploração e de nossas Resistências.

Fazemos parte dos povos da nossa América, Abya Yala, que está de pé, lutando de múltiplas formas para defender a vida, nossos direitos e dignidade, os territórios, os corpos e toda a natureza. Ouvimos suas vozes e nos comprometemos a fortalecer nossa solidariedade ativa, especialmente com o povo Avá-Guarani Paranaense em sua exigência por reparações integrais pela desapropriação causada pela construção da mega barragem de Itaipu; com o povo do Haiti frente ao novo projeto de ocupação em curso; com o povo peruano que enfrenta o golpe e a ditadura e exige a implementação de um processo Constituinte; com o povo Garifuna e outros em Honduras diante da expropriação, criminalização, desaparecimentos e assassinatos; com a luta no Panamá contra a mineração; com o povo cubano que não cede na sua política de solidariedade com o mundo, apesar do bloqueio genocida e imoral e da designação do seu país como terrorista; com a defesa da recente decisão popular do Equador de proibir a mineração de metais no Chocó Andino, no Distrito Metropolitano de Quito, e deixar o petróleo no subsolo do Bloco ITT, no Parque Nacional Yasuní, na Amazônia.

Afirmamos a nossa solidariedade com as lutas travadas em todo o mundo por uma paz fundada na justiça, na soberania e na autodeterminação, fazendo eco neste momento particularmente com o grito do povo palestino contra o genocídio.

Durante a Conferência, vimos como os nossos povos e países vivem sucessivas crises de governança, culturais, socioecológicas e estruturais, geradas a partir das políticas e empréstimos de grandes bancos, empresas e fundos financeiros multinacionais, apoiados por governos, parlamentos, poderes judiciários e instituições financeiras multilaterais. Denunciamos o sistema de endividamento perpétuo, juntamente com o sistema corporativo de comunicação, como uma das ferramentas centrais do processo histórico de dominação, pilhagem e dependência, que continua a se expandir e a se aprofundar de múltiplas formas.

Trocamos análises de conjuntura e experiências que nos permitiram tornar visíveis as realidades comuns sobre os processos de dívida pública e privada e a sua relação com o avanço das políticas de ajuste, de mercantilização e financeirização da vida, bem como as tentativas de privatização dos nossos direitos, territórios, bens e corpos. A promoção de parcerias público-privadas, de acordos de comércio livre e de proteção dos investimentos estrangeiros, dos paraísos fiscais e de todas as formas de intervenção do grande capital, perpetuam as dicotomias entre indivíduo-comunidade, homem-mulher, sujeito-natureza e civilização-barbárie, em detrimento das formas comunitárias de produção, consumo e desperdício harmonizadas com a natureza, bem como da nossa participação e controle democrático nas decisões que afetam a nossa vida e a de todo o planeta.

Constatamos que estes diversos processos de endividamento constituem um elemento estrutural da estratégia de reprodução e acumulação de capital que hoje procura avançar com grande ostentação sobre as próprias fontes da vida. Vemos como a chamada “economia verde”, por exemplo, com os seus mercados de carbono, trocas de dívidas pela conservação ou ação climática, transições energéticas nas mãos das mesmas potências de sempre, surge como uma falsa solução para a crise ecológica e climática que é fundamentalmente estrutural, e que significa perpetuar o modelo de “desenvolvimento” extrativista, excludente e endividado. Identificamos as diferentes formas como o capital imperial opera em nossos povos, corpos e territórios.

Diante desta realidade, afirmamos que a dívida em todas as suas expressões é ilegítima, ilegal, odiosa, antiética e imoral, por isso NÃO DEVEMOS e NÃO PAGAMOS. Pelo contrário, afirmamo-nos como verdadeiros povos credores, assumindo que a Dívida não é apenas Financeira, mas também Histórica, Cultural, de Género, Socioecológica e Democrática. Exigimos o repúdio e o cancelamento das dívidas que não temos e as devidas reparações integrais aos territórios, comunidades e povos que foram e são vítimas destes crimes.

Levantamos a necessidade de articular forças de forma solidária para a construção de Soberanias Populares que se entrelaçam com a recuperação e fortalecimento das Soberanias Territoriais, Culturais e Espirituais; Energética e Alimentar; Política e Financeira. Precisamos descolonizar o poder e construir um contrapoder de baixo para cima, dos povos e dos territórios, enraizado no respeito pelos processos históricos, na memória, na ancestralidade e no trabalho político de cada território, bem como construir e posicionar uma narrativa contra-hegemônica baseada em reciprocidade, complementaridade, coletividade e consciência de ser natureza.

Somos os povos explorados e saqueados do Sul que devemos nos assumir como sujeitos históricos com capacidade de levar a cabo estas lutas para transformar as nossas realidades, e construir alternativas de soberania e de bem viver. As soluções não virão das instituições financeiras internacionais – IFIs, nem do G20, nem de governos e instituições estatais que estão cada vez mais distantes das nossas necessidades e direitos. Exigimos mudanças profundas nas políticas e estruturas que sustentam esta lógica de exploração, endividamento, pilhagem e dominação, incluindo a crescente criminalização das lutas e a militarização dos territórios, rumo a modos de vida baseados na democracia ativa, na justiça e na autonomia do povo para recuperar o sentido coletivo da vida.

Neste sentido, propomos continuar fortalecendo nossas experiências de formação para a ação política com estratégias de educação, organização e comunicação popular, articulando-nos para consolidar lutas e resistências, gerar e apoiar campanhas e mobilizações contra o sistema de dominação múltipla de nossos povos, a construção de espaços comuns não competitivos e novas formas coletivas e solidárias de assumir a economia. Reconhecemos a criação de Tribunais Populares como uma valiosa estratégia de mobilização.

São Paulo, 25 de outubro de 2023.

Íntegra da declaração final:


Declaração em espanhol:

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