Onde estávamos há exatos 20 anos? Se olharmos para a América Latina, o início dos anos 2000 era caracterizado por governos que constituíam uma chamada “onda progressista”, em que políticas sociais e mecanismos de transferência de renda, proporcionaram a ampliação do acesso ao consumo, moldando um novo cenário na região.
Duas décadas depois, e após o encerramento de um ciclo de ascensão de governos abertamente autoritários e conservadores, governos com orientação política semelhante aos que venceram eleições presidenciais no início deste século retornam ao comando de países latinoamericanos (situação da Argentina) ou estão bem colocados nas pesquisas eleitorais (caso do Brasil).
Assim, sobretudo com a proximidade de mais uma eleição no Brasil, é fundamental olharmos para o passado, tanto para compreendermos os caminhos que nos conduziram até aqui, quanto para decidirmos o quanto será apostado nas contradições já conhecidas. Neste sentido, cabe a pergunta: romper com o neoliberalismo é ainda um compromisso político das esquerdas no Brasil?
Esse questionamento é necessário se lembrarmos que os governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) promoveram uma chamada “contenção aceleracionista”. Para entendermos isto, é importante lembrarmos que o pano de fundo das eleições de finais do século 20 e início do 21 foram marcadas por uma crise global que consolidou a corrosão da ideia de cidadania salarial.
Dito de outro modo, as vitórias eleitorais de Chávez (Venezuela, 1999), Lula (Brasil, 2002), Kirchner (Argentina, 2003), Tabaré Vázquez (Uruguai, 2005), Rafael Correa (Equador, 2007), Fernando Lugo (Paraguai, 2008) – e de alguns dos seus sucessores, como Dilma Rousseff (Brasil) e Pepe Mujica (Uruguai) – ocorreram num panorama mundial de derrocada tanto da garantia de direitos trabalhistas quanto dos direitos sociais garantidos pelo Estado, como resultado da ampliação do neoliberalismo.
O que ocorreu nesses governos, portanto, não desconsiderando as nuances de cada país, foi um movimento de contenção, no sentido de mitigar os efeitos dessa dinâmica verificada internacionalmente, e não de superação. É por isto que, estruturas profundamente desiguais, forjadas em bases coloniais, não foram rompidas.
Um exemplo emblemático desse fenômeno foi o convite feito por Lula, quando presidente da República, a Henrique Meirelles para assumir o Banco Central, cargo que ocupou integralmente nos dois primeiros governos do PT. Meirelles, vale lembrar, havia presidido o Bank Boston, era deputado federal pelo MDB, intimamente ligado a Michel Temer, tanto que foi nomeado seu ministro da Economia durante o governo golpista.
Em uma das edições da coleção “História contada do Banco Central do Brasil”, um resumo preciso da orientação de Meirelles: “consolidou o tripé que vinha sustentando a política econômica, composto por regime de metas para inflação, câmbio flutuante e austeridade fiscal… Enfrentou com sucesso a crise no sistema financeiro internacional de 2008, que atingiu a economia brasileira, adotando uma série de medidas que restauraram a liquidez interna e externa”.
Em outros termos, o exemplo de Meirelles no comando da política de um governo do PT evidencia a opção dos governos progressistas por uma composição com setores conservadores que se dedicaram a um “melhorismo”, que expressa efetivamente uma lógica de continuidade, portanto sem almejar mudanças estruturais.
O resultado? A aceleração das desigualdades, visto que interesses e atores que pareciam controlados puderam, em verdade, preparar as bases para avançar de forma descontrolada pelo tecido social brasileiro. Esses atores são conhecidos: o conservadorismo político (liderado pelo MDB), o neopentecostalismo (cada dia mais fortalecido no Congresso, nos meios de comunicação e com uma agenda política que dita projetos de educação e valores morais), e os militares.
Ou seja, ao optarem pelo “melhorismo”, os governos progressistas – e esse exemplo mencionado acima é representativo disso – foram funcionais ao neoliberalismo, resultando em duas contradições em termos: um progressismo que regride e um neoliberalismo inclusivo.
20 anos depois do início de ciclo desse progressismo pautado pelo reforço do neoliberalismo – em que a inclusão de parcelas significativas da população se deu pelo consumo e popularização do crédito –, o contexto latinoamericano é, novamente de abissais desigualdades. A seguir, alguns dados que confirmam a gravidade do momento atual.
Apenas em 2021, cinco milhões de pessoas entraram na pobreza extrema nos países da América Latina, sendo agora 86 milhões de pessoas (13,8% população da população latinoamericana) nessa situação na região que é considerada “a mais vulnerável do mundo nesta pandemia”.
Aqui na América Latina, os 10% mais ricos concentram 37% da renda de toda a região, um percentual de concentração que não é observado em nenhuma outra parte do mundo. Ao mesmo tempo, os 40% latinoamericanos mais pobres recebem apenas 13% de toda a renda regional.
E essa disparidade, como sabemos, envolve e articula também os marcadores de raça, gênero e território. Não é à toa, as maiores incidências de pobreza e extrema pobreza atingem áreas rurais, negros/as, indígenas e outros povos originários e comunidades tradicionais.
Não é à toa que 37% dos indígenas e 35% das negras e negros de toda a América Latina estejam na faixa dos 20% mais pobres da região.
Não é por acaso, por exemplo, que uma mulher em um bairro pobre de Santiago, capital do Chile, tenha uma expectativa de vida 18 anos menor que outra mulher de uma área rica da mesma cidade.
Também não é acaso que, na Cidade do México, os homens de bairros mais pobres morram, em média, 11 anos antes que os ricos. Ou, do mesmo modo, que quem mora em Paraisópolis viva em média 10 anos menos do que os moradores do Morumbi, bairros tão próximos (geograficamente) e tão distantes (econômico-socialmente) de São Paulo.
Um recente relatório da Organização Internacional do Trabalho também sinaliza o crítico quadro: 28 milhões de pessoas estão desempregadas na América Latina; 4,5 milhões dos 49 milhões de empregos perdidos entre o final de 2019 e o segundo trimestre de 2020 ainda não foram recuperados; entre 60% e 80% dos empregos recuperados até o terceiro trimestre de 2021 eram informais; metade das pessoas com emprego em toda a região estão na informalidade.
Nessa mesma região, o número de bilionários aumentou 40% durante a pandemia de covid-19 e as 107 pessoas mais ricas da América Latina possuem um patrimônio líquido estimado em 480 bilhões de dólares.
Esses números – e tantos outros que revelam a persistência da desigualdade estrutural em nossa região – exigem dos setores comprometidos com a democracia substancial o rompimento de uma lógica “melhorista”, que aposta todas as fichas no retorno a um passado que teve inegáveis e importantes avanços sociais, mas que também serviu ao aprofundamento do neoliberalismo.
Romper com esta lógica significa, antes de tudo, não ter crenças ilusórias num sistema político que é subserviente à economia. Isso não significa abandonar ou descuidar dos processos eleitorais. Ao contrário, é essencial a participação ampla e a disputa dos seus rumos, mas não esquecendo dos seus limites.
Além disso, é fundamental a proposição de um modelo amparado em outras bases, em que a justiça social – que não combina com neoliberalismo e passa fundamentalmente por reverter estruturas coloniais – seja o horizonte.
Não devemos, não pagamos!
Somos os povos, os credores!
Não à militarização!
Pela autodeterminação dos povos!
Rede Jubileu Sul Brasil, 24 de maio de 2022.