Paulo Victor Melo | Especial para o JSB
Uma recente pesquisa, realizada pela Fundação Getúlio Vargas, revelou que apenas 29% da população expressa ter confiança no sistema de justiça brasileiro, índice consideravelmente menor do que instituições como Forças Armadas (59%) e Igreja Católica (57%) e também abaixo do setor privado, como grandes empresas (34%) e redes de TV (33%).
Em seu último relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, publicado em março deste ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apontou uma série de questões que dão pistas sobre a baixa confiabilidade da população no sistema de justiça, a exemplo da ausência de avanço em investigações, condenações e reparações às vítimas de violência institucional.
“Na opinião da Comissão, há um alto índice de impunidade desses crimes, o que, em intersecção com a discriminação estrutural, consolida um diagnóstico de racismo institucional presente no sistema de justiça. Essa impunidade seletiva também pode ser observada nos crimes ocorridos durante a ditadura civil-militar no país”, destacou a CIDH.
Outro ponto ressaltado pela CIDH diz respeito à política institucional de “guerra às drogas” que impacta diretamente sobre comunidades negras, pobres e periféricas e na exacerbação do racismo no sistema de justiça criminal.
De acordo com o órgão, “uma amostra disso se reflete nas políticas de drogas iniciadas desde os anos 1990 e que tem como objetivo principal criminalizar o consumo e o tráfico dessas substâncias. Apesar de o Estado ter realizado várias ações para contemplar tratamentos diferenciados aos crimes relacionados às drogas (uso e tráfico), verifica-se notável aumento no número de pessoas privadas de liberdade por delitos de drogas no Brasil. Segundo dados oficiais disponíveis, entre 2006 e 2016, esse contingente aumentou 272%”.
A CIDH alertou também para o que qualifica como uma “cultura da impunidade” que estrutura o modelo de funcionamento das instituições de segurança pública e sistema de justiça, sobretudo no concernente às violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado.
“Essa cultura seria parte de um legado autoritário, que continua a agir na forma de regras, procedimentos e práticas que sobreviveram à transição democrática e manifesta-se principalmente nas ações de autoridades policiais e/ou militares que, apesar de serem formalmente contrárias ao estado de direito, acabam sendo aprovadas pela população ou até mesmo pelas autoridades estatais”, manifestou.
É atuando sobre esta realidade, e visando transforma-la, que redes e organizações da sociedade civil constituíram o Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça (TPISJ), que busca, dentre os seus objetivos principais, denunciar violações de direitos humanos cometidas pelo Sistema de Justiça brasileiro e formar/informar a sociedade sobre o funcionamento deste sistema e seus impactos na democracia.
Com as suas atividades de estruturação interna iniciadas em agosto de 2020, o lançamento público do Tribunal ocorreu em 1 de março deste ano, por meio de uma Live transmitida ao vivo nas redes sociais.
Na ocasião, Luciana Pivato, advogada popular e coordenadora do Tribunal, disse que “é uma ideia ousada, queremos também discutir com um campo mais amplo da sociedade e escutá-la para produzirmos insumos sobre qual Justiça queremos para o país”.
Uma das debatedoras da atividade de lançamento do Tribunal, a jurista e ex-Procuradora Federal Deborah Duprat acredita que “se considerarmos todos os campos – indígena, sobre violência de gênero, criança e adolescente, população LGBTQI – temos uma justiça mais pulsante pós-década de 198”.
Vale ressaltar que esta pujança é resultante da atuação de movimentos sociais que, nos últimos anos, têm colocado as desigualdades estruturais do Sistema de Justiça no centro do debate público. Antes, lembrou Deborah, “tivemos um sistema de justiça que homologou injustiças, controlou corpos e os tornou invisíveis”.
Estruturação e desafios do Tribunal
Como mencionado acima, a Live de lançamento do Tribunal foi precedida por um conjunto de ações e atividades de estruturação da Secretaria Operativa, ampliação das entidades participantes, produção de documentos temáticos, sistematização de casos de violações de direitos humanos e elaboração e execução do Plano de Comunicação.
No tocante ao engajamento de organizações populares, importa considerar que ainda em novembro do ano passado, quando da realização de uma reunião ampliada, quase 40 entidades se envolveram em instâncias de discussão e formulação do Tribunal.
Segundo Alexandre Pacheco, da Secretaria Operativa do TPISJ, “o Grupo de Trabalho sobre Racismo e desigualdades de gênero e classe no sistema de justiça desenvolve seus trabalhos com 28 integrantes, representando nove organizações e movimentos. Enquanto o Grupo de Trabalho sobre Influências indevidas no sistema de justiça é composto por 21 integrantes de 10 entidades. As outras 20 organizações se dividem entre os GT’s de atividades lúdicas, de comunicação e através de participações nos espaços ampliados do TPISJ”.
A respeito da produção de materiais de subsídio temático, está em elaboração a primeira versão sobre as séries acusatórias “Influências indevidas no Sistema de Justiça” e “Racismo e desigualdade de gênero e classe no sistema de justiça”, que trata de questões como favorecimento empresarial; privatização/elitização/desigualdades do acesso à justiça; desigualdades no ingresso e composição do sistema de justiça; captura corporativa; interferência da mídia no sistema de justiça; ausência de mecanismos de participação, controle social e transparência; dentre outros.
Outra linha de ação que vem sendo desenvolvida pelo Tribunal é a sistematização de casos de violações de direitos humanos. Um documento preliminar, que já reúne de elementos e informações centrais sobre seis casos, está em debate pelas organizações que integram o TPISJ.
No que diz respeito ao Plano de Comunicação, uma diversidade de iniciativas foram adotadas, com destaque para a criação e atualização permanente de perfis do Tribunal nas mídias sociais.
No planejamento do TPISJ estão previstas também a realização de audiências e atividades regionais que, de acordo Alexandre Pacheco, tem os objetivos de “visibilizar nacionalmente a primeira versão sistematizada da denúncia, provocar o debate sob uma perspectiva local sobre o sistema de justiça, além de coletar mais contribuições ao documento de denúncia que deve ter uma segunda versão sistematizada ao final dessas atividades”.
Todos os avanços do TPISJ até aqui, vale enfatizar, se dão num contexto de intensas dificuldades frente aos impactos da pandemia de covid-19 e a necessidade de transposição para o digital de atividades anteriormente previstas para ocorrer de modo presencial.
Ainda assim, como frisou a advogada popular e integrante da Coalizão Negra por Direitos, Allyne Andrade, durante a Live de lançamento do TPISJ, “ver que a gente, apesar de tudo, ter forças e colocar uma iniciativa como o Tribunal no ar é uma possibilidade de ter crença no amanhã e na resistência”.
O projeto “Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça” é financiado com recursos da União Europeia por meio da Ajuda a Terceiros, no âmbito da ação Fortalecimiento de la Red Jubileo Sur / Américas en el logro del desarrollo y de la soberanía de los pueblos latinoamericanos y caribeños.