Por Paulo Victor Melo | Especial JSB
“A Coletiva trouxe uma maior proximidade entre nós, porque tem nos permitido uma troca de saberes, de informações, de metodologias, de conteúdos sobre o trabalho que realizamos, a partir de um lugar que é tão amplo e diverso”.
“A criação da Coletiva possibilitou que as organizações dessem uma atenção especial para as mulheres que integram as suas bases, pautando temas específicos da realidade das mulheres e o protagonismo feminino e, assim, conseguindo evidenciar o quanto os sistemas econômico e político impactam diretamente as vidas das mulheres e de seus familiares”.
A “Coletiva” mencionada por Magnólia Said e Marli Aguiar, militantes feministas que vivem nas cidades de Fortaleza e São Paulo, respectivamente, é a Coletiva de Mulheres da Rede Jubileu Sul Brasil, consolidada em junho de 2019 como espaço de auto-organização das mulheres integrantes de entidades sociais e movimentos populares que compõem a Rede JSB.
Poetisa e articuladora local da Rede Jubileu Sul em São Paulo, Marli ressalta que a Coletiva significa a confirmação de um espaço para “abraçar e trazer o debate concreto da realidade das mulheres, especialmente no período da pandemia, como a violência contra as mulheres, o processo participativo, e de mobilização, e focando no aspecto importante do impacto da dívida na vida das mulheres”.
Fruto deste relevante trabalho que tem realizado em termos de organização, formação e sensibilização de mulheres de diversos grupos, a Coletiva recebeu, na última sexta-feira, 10/12, Dia Internacional dos Direitos Humanos o Prêmio Frei Tito Alencar de Direitos Humanos, concedido pela Assembleia Legislativa do Ceará.
Metodologia de elaboração coletiva
Advogada e assessora técnica do ESPLAR – Centro de Pesquisa e Assessoria, Magnólia avalia que “mesmo durante a pandemia, a Coletiva nos oportunizou participar de espaços importantes de aprendizados e reflexões, a exemplo do curso sobre tecnologias da informação e comunicação; nos aproximou do conjunto das ações do Jubileo Sur/Americas; ajudou na nossa formação, sendo um exemplo o curso sobre economia e feminismo; e favoreceu uma maior proximidade entre as assessorias das nossas entidades”.
Outro aspecto destacado positivamente por Magnólia “foi a metodologia de construção dos nossos instrumentos de trabalho, que têm sido desenvolvidos através da participação de dezenas de mulheres de várias organizações e regiões do país”.
Alguns exemplos de materiais citados pela advogada foram: a revista A Dívida Pública e o impacto na vida das mulheres, que em 2020 foi base de uma roda de conversa com cinco encontros virtuais; a cartilha sobre Metodologia de trabalho com as mulheres; o Manual de Orientação para educadoras que lidam com situações de violência doméstica; série de vídeos resultantes de Oficinas de Comunicação em 2020 e que neste ano de 2021 foram realizadas mais duas Oficinas de Comunicação com quatro módulos cada um.
Articulação, formação e ampliação do debate
As ações protagonizadas pela Coletiva de Mulheres durante o ano de 2021 expressa a prioridade que os temas de gênero, raça, classe e território têm na atuação cotidiana da Rede Jubileu Sul Brasil.
Um indicador, neste sentido, o conjunto de atividades de articulação, formação e discussões (internas e públicas) e incidência política realizadas nos últimos meses, como a Ciranda de Estudos sobre endividamento; as Oficinas de Comunicação para uso das tecnologias digitais; a participação em ações da Campanha A Vida Acima da Dívida e nos Encontros Feminismos Territoriais e Ecologismos diversos em Abya Yala, organizados pela Red Jubileo Sur/Americas.
Outra iniciativa nesta direção foi o acolhimento e solidariedade entre as mulheres, na perspectiva do autocuidado coletivo durante a pandemia, por meio de ligações telefônicas, conversas via aplicativos de mensagens, reuniões online e, mais recentemente, pequenos encontros no formato híbrido (presencial e remoto).
Esta diversidade de ações tem garantido resultados como a integração das mulheres de territórios vulnerabilizados em processos e eventos nacionais e internacionais, especialmente na região latinoamericana e caribenha; a ampliação do debate sobre “feminismos comunitários”; aprofundamento da discussão sobre as resistências dos povos negros e indígenas no Brasil; dentre outros.
A articulação entre mulheres de diferentes territórios que reivindicam o direito à moradia é outro exemplo da centralidade da perspectiva de gênero para a Rede Jubileu Sul Brasil.
Marcela Vieira, articuladora da ação Sinergia Popular na cidade de Manaus, frisa que “frente ao desmonte das políticas públicas que garantam o direito à moradia, nós temos um crescimento cada dia maior das ocupações e temos constatado uma grande presença das mulheres como chefes de família, em que as mulheres ali se veem com a possibilidade de um teto”.
Neste contexto, Marcela diz que, tanto as atividades do Sinergia quanto as demais ações da Rede Jubileu Sul, tem ajudado a “repercutir a voz das mulheres amazônidas, mulheres indígenas, ribeirinhas, que saem dos seus territórios e vêm para Manaus em busca de trabalho, mas são submetidas a condições precárias de vida. É através da discussão e da concretização do direito de morar e de ocupar que essas mulheres têm conquistado melhorias de vida”.
Cenário de retrocessos
Vale enfatizar que o trabalho desempenhado pela Rede Jubileu Sul Brasil, com o protagonismo da Coletiva, revela-se como uma ação de resistência frente aos inúmeros retrocessos nas questões de gênero no Brasil.
O acúmulo de tarefas domésticas, o aumento do desemprego e do subemprego, os abusivos reajustes nos preços dos alimentos, gás de cozinha e cesta básica; a perda de renda pelas famílias, e a falta de políticas públicas são alguns fatores que têm provocado adoecimento físico e mental nas mulheres.
Dados de um levantamento coordenado pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP não deixam dúvidas: dentre as mulheres entrevistadas, 40,5% apresentaram sintomas de depressão, 34,9% de ansiedade e 37,3% de stress.
Já a pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada pela Sempre Viva Organização Feminista, revelou que desigualdades no trabalho, renda e proteção social estão sendo aprofundadas no contexto da pandemia. Alguns números exemplificam: 50% das mulheres passaram a cuidar de alguém na pandemia; entre as mulheres responsáveis pelo cuidado de crianças, idosos ou pessoas com deficiência, 72% afirmaram que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia; 41% das mulheres que seguiram trabalhando na pandemia e não tiveram redução de salário, afirmaram estar trabalhando mais; para 40% das mulheres, a pandemia e o isolamento social colocaram a sustentação da casa em risco.
Quando observados os componentes de raça e gênero, escancara-se os efeitos ainda mais perversos das desigualdades para as mulheres negras. Um recente estudo da USP demonstrou que os 705 mil homens brancos mais ricos do Brasil possuem uma renda maior que as cerca de 32,7 milhões de mulheres negras brasileiras. O fato das mulheres negras serem o grupo da sociedade com as maiores taxas de desemprego e de mortalidade por covid-19 também não são acaso.
Para Rosilene Wansetto, da coordenação da Rede Jubileu Sul Brasil, “a situação de pandemia e de isolamento tem causado desgaste para muitas mulheres, com o aumento e sobrecarga com tarefas cotidianas, de cuidado com os filhos e a família, trabalho e a pressão do trabalho. Muitas mulheres envolvidas na ação, beneficiárias relatam cansaço físico e mental, problemas de saúde por conta das condições de vida e de trabalho que o contexto impõe”.
Ela sublinha ainda que “o cenário político e econômico no país não apresenta melhoras, e as muitas perdas ocasionadas pelo Covid-19, doenças e descaso das autoridades quanto a proliferação do contágio do coronavírus causam desesperança e afetam profundamente a vida das mulheres, o que não é diferente com as que atuam nas ações da Rede Jubileu Sul”.
Frente a estes desafios e a um governo que aprofunda e legitima as violências estruturais contra as mulheres, iniciativas como a Coletiva de Mulheres devem ser celebradas, assim como outras experiências constituídas em outros tempos e que seguem necessárias, a exemplo do Centro Dandara de Promotoras Legais Populares, fundado em dezembro de 2001, e que completa duas décadas de atuação em defesa dos direitos das mulheres na cidade de São José dos Campos, em São Paulo.
As iniciativas com mulheres na Rede Jubileu Sul Brasil são apoiadas pela União Europeia, Kafod, DKA, Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, que garantiu ao Instituto de Relações Exteriores (IFA) recursos para implementação do Programa de Financiamentos Zivik (Zivik Funding Program). As ação fazem parte do processo de fortalecimento da Rede Jubileu Sul e das suas organizações membro.