Além da produção de alimentos saudáveis contra a fome em meio à pandemia, famílias apostam na emancipação e construção coletiva de outro modelo de vida e desenvolvimento
Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil
Uma data para ficar na história e mostrar “que é possível nos juntarmos, melhorar nossa vida e continuar firme vencendo a pandemia”. Assim a liderança comunitária Beth Silva define o início do “Sisteminha” de segurança alimentar, inaugurado pelas famílias em 22 e 29 de agosto, com dois tanques de criação de peixes construídos por mutirão nas comunidades do Conjunto Palmeiras e Raízes da Praia, em Fortaleza (CE). As vivências de inauguração foram transmitidas ao vivo nas redes do Jubileu Sul Brasil (confira os vídeos no final do texto).
A iniciativa nasceu a partir da deliberação das próprias comunidades frente à perda de renda e à fome que se alastraram junto com a Covid-19 na capital cearense, numa proposta que visa tanto à segurança e soberania alimentar, quanto um modelo de desenvolvimento alternativo, que resgata a ancestralidade da partilha e da troca do que é produzido coletivamente.
“Esse é o quintal da esperança para nós, para as borboletas e para as abelhas. Viva a autonomia alimentar, fora esse mercado escravista e esse capitalismo! Viva o quintal da esperança!”, saudou Chicão Oliveira, do grupo Crítica Radical, durante a vivência inaugural do primeiro tanque, no Conjunto Palmeiras, em 22 de agosto.
Para ele, o Sisteminha é um convite “para voltarmos ao costume da troca do alimento que deixamos porque veio o mercado. Deixamos de plantar e partilhar porque achávamos que felicidade era pegar o carrinho do supermercado e ir comprar veneno. É um convite para comermos alimentos sem veneno, para dar um basta nesse capitalismo que nos aprisiona”.
A construção de galinheiros e espaços de cultivos de hortas comunitárias também fazem parte do projeto. Nesta etapa, a criação de peixes é um dos elementos principais pelo baixo investimento inicial, com tanques que filtram e recirculam a água e podem ser instalados em pequenos espaços, a partir de 100 m², seja em áreas rurais ou urbanas.
Mulheres à frente
Beth Silva, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e moradora do Conjunto Palmeiras, é uma das mulheres que lideram a implementação do Sisteminha nas comunidades de Fortaleza, articuladas pelo Movimento dos Conselhos Populares (MCP) e pelo Instituto Negra do Ceará (Inegra), que realizam a ação com apoio do Jubileu Sul Brasil por meio do projeto Protagonismo da Sociedade Civil nas Políticas Macroeconômicas, cofinanciado pela União Europeia. O Sisteminha também conta com apoio da da Cafod, da DKA e da Bé Ruys Fonds.
Durante a vivência de inauguração, ela chamou atenção para o agravamento da situação das mulheres na pandemia, vítimas ao mesmo tempo da insegurança alimentar, da sobrecarga de tarefas e da violência.
“A ação tem unido principalmente as mulheres, que têm sofrido muito com a carga de trabalho doméstico e a violência doméstica. São elas que têm que pensar no que dar de comer aos filhos, muitas começaram a sofrer depressão. Precisamos nos unir, nos juntar para realmente poder viver e ter uma vida digna, é essa a nossa luta e organização. Acreditamos nesse modelo de sociedade que nós queremos, onde haja participação e direito garantido, onde haja pessoas com vez e voz, que possam ser escutadas”, destaca.
Mais conhecida como Tia Rosa, Ângela Maria de Souza Almeida lidera o sistema na Raízes da Praia, comunidade que surgiu a partir de uma ocupação. Marcando a vivência inaugural, ela mostrou ao vivo, orgulhosa, o resultado do mutirão:
“O Sisteminha é nossa autonomia sustentável na Raízes da Praia, nos sentimos abençoados com essa realização”. Ela também plantou mudas de árvores frutíferas e de medicinais no entorno do tanque de peixes, em conjunto com outras mulheres e homens da comunidade. Ao final da atividade, as famílias se reuniram no barracão da ocupação para celebrar o aniversário dos 12 anos da luta popular por moradia.
Emancipação e construção coletiva
Pedro Fernandes, da comunidade do Serviluz, é um dos voluntários dos mutirões e precursor da proposta na comunidade. Ele conta que conheceu o modelo de produção de alimentos numa formação no Sítio Brotando Emancipação, experiência realizada pelo grupo Crítica Radical na comunidade da Mangabeira, em Cascavel, na Região Metropolitana de Fortaleza. Ele destaca que o sistema permite gerenciar um outro modelo de vida:
“É uma outra possibilidade nesse mundo de marasmo e crise, de estarmos sonhando juntos uma outra relação humana, onde as pessoas não sejam guiadas, mediadas pela forma do dinheiro que sabemos o quanto causa exclusão”.
Segundo Fernandes, o desafio é fazer com que as pessoas entendam a importância “de estarem juntas numa outra construção, partilhando desde a produção do alimento a outras coisas para desenvolver a vida, a alegria, o lazer, a diversão, para podermos vencer esse momento tão difícil numa crise que a cada dia se aprofunda”.
Igor Moreira, do MCP, acompanha a implementação do projeto em diálogo com a comunidade e o Jubileu Sul Brasil, e reforça a ideia de que a ação é mais do que produção de alimento:
“Tem a ver também com a posição de comunidade com a promoção de partilha, a produção de emancipação das pessoas. Nosso objetivo não é a questão da renda simplesmente, de produzir para vender, mas é produzir para partilhar. A construção do Sisteminha foi em mutirão, mas não é só a construção, a sustentação do sistema é feita em mutirão”, pontua.
Criado em 2002, modelo brasileiro chegou até a África
Formalmente chamado de Sistema Integrado para Produção de Alimentos (Sisteminha Embrapa), esse modelo agrícola sustentável foi criado em 2002 pelo pesquisador Luiz Carlos Guilherme, então doutorando em zootecnia na Universidade Federal de Uberlândia.
O sistema foi aperfeiçoado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa Meio-Norte, na Unidade de Execução de Pesquisa de Parnaíba, cidade a 348 quilômetros ao norte de Teresina (PI), tendo quatro princípios básicos – a miniaturização da estrutura, replicabilidade, escalonamento da produção, segurança alimentar e nutricional.
O Sisteminha ganhou destaque pela primeira vez no Projeto Arco Verde, em Amarante (MA), tendo entre os primeiros beneficiados indígenas das aldeias Nova Gavião e Juçaral Guajajara, e no assentamento Cajueiro, no projeto de irrigação Tabuleiros Litorâneos, em Parnaíba.
Do Piauí, foi adotado por pequenos agricultores da Bahia, Ceará, Maranhão, Minas Gerais e Tocantins, e chegou até o continente africano, em Angola, Camarões, Etiópia, Moçambique, Gana, Uganda e Tanzânia. A Embrapa oferece curso gratuito pela internet sobre Sisteminha, saiba mais clicando aqui.
Vivência inaugural do ‘Sisteminha’ no Conjunto Palmeiras:
Vivência de inauguração do Sisteminha na Comunidade Raízes da Praia: