Texto: Paulo Victor Melo | Especial para o JSB
22 de abril de 2020. Dia em que se completaram 520 anos do que muitos ainda insistem em chamar de “descobrimento” do Brasil. Se o 22 de abril de 1500 foi perverso para os povos originários, o de 2020 não foi diferente. Naquela quarta-feira, ao redor de uma grande mesa, o presidente da República e seus ministros promoviam um show de horrores. Duas falas foram extremamente emblemáticas neste sentido: o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse “eu odeio Povos Indígenas”; e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, convocou os seus colegas a aproveitar as atenções públicas focadas na pandemia para “passar a boiada” na área ambiental.
Um ano após aquela reunião ministerial, o cenário brasileiro demonstra que a boiada parece estar passando e tendo como principais alvos, justamente, os indígenas e outros Povos e Comunidades Tradicionais.
Algumas proposições legislativas recentes apontam nesta lamentável direção, a exemplo dos Projetos de Lei 510/2021 (Senado) e 2633/2020 (Câmara dos Deputados), que tentam mudar as atuais regras de regularização fundiária para legalizar e incentivar a grilagem em terras da União.
A partir destes projetos, conforme organizações da sociedade civil têm alertado, madeireiros e grileiros serão estimulados – visando ter a anistia de desmatamentos recentes e a possibilidade de recebimento dos títulos de terra – a seguirem invadindo unidades de conservação, terras indígenas e desmatando mais áreas.
Um estudo do Instituto Socioambiental aponta para um crescimento exponencial da invasão de terras públicas e o consequente aumento do desmatamento entre 2018 e 2020, o que sinaliza para uma consolidação em caso de aprovação dos dois PL’s mencionados acima.
Apenas nas florestas públicas na Amazônia, conforme o estudo do ISA, houve um aumento de 98% no desmatamento, passando de 185 mil hectares para 367 mil hectares. Outro indicador de legitimação da grilagem caso os Projetos de Lei sejam aprovados é a já elevada taxa de cadastros irregulares em áreas protegidas. Somente em Unidades de Conservação de uso sustentável, como as Reservas Extrativistas, houve um aumento de 274% no registro de imóveis no Cadastro Ambiental Rural e um aumento de 243% no desmatamento.
Segundo publicação do ISA, esses números dimensionam “o chamado ‘efeito Bolsonaro’ sobre a política fundiária na Amazônia e a proteção das florestas, composto por uma mistura de desmonte da fiscalização ambiental, discursos contra a proteção dos povos da floresta e projetos de lei no Legislativo, que mesmo antes de aprovados animam os grileiros a agir sem medo de punição”.
Racismo ambiental
De acordo com Cris Faustino, do Instituto Terramar, iniciativas como os dois PL’s citados se sustentam e reforçam a perspectiva do racismo ambiental, visto que “estão vinculadas ao histórico de desconsideração dos direitos dos povos, de ganância e apropriação dos territórios, dos ecossistemas e da biodiversidade para o uso prioritário das empresas e dos projetos econômicos que, geralmente, são conduzidos, organizados e de pertencimento branco”.
Ao enfatizar que “esses processos se dão alijados da participação Povos e Comunidades Tradicionais afetados, são decididos a partir de pressupostos e ideias totalmente contrárias aos modos de vida, às cosmovisões, à forma como as comunidades ocupam o território”, Faustino chama a atenção para um conjunto de violências e privilégios que orientam a construção de legislações prejudiciais às populações que vivem nos territórios.
Num país caracterizado por profundas relações de desigualdade, cenário que se verifica também em nível de América Latina e Caribe, os Projetos de Lei de favorecimento da grilagem e o racismo ambiental se articulam com um conjunto de dívidas históricas do Estado brasileiro com os Povos e Comunidades Tradicionais.
Campanha por Justiça Socioecológica
Neste sentido, no entendimento da Rede Jubileu Sul/Américas, torna-se fundamental a reivindicação da justiça socioambiental como o reconhecimento de relações injustas e desiguais, de caráter histórico e, portanto, com a existência e a obrigação de compensação das dívidas históricas, sociais e ecológicas.
É esse entendimento da justiça socioambiental como perspectiva de garantia dos direitos coletivos dos povos – em conjunto com os direitos dos seres não humanos – que baseia, por exemplo, a Campanha por Justiça Socioecológica, lançada em março deste ano e que tem como objetivo “contribuir com a mobilização social nas dinâmicas territoriais, potencializar as narrativas de resistência e as propostas que estamos construindo numa perspectiva decolonial, despatriarcalizada e antirracista”, conforme dito por Martha Flores, secretária-geral da Red Jubileo Sur Américas.
À época do lançamento da iniciativa, Flores ressaltou que “a Campanha tem o sentido de apontar como estamos vivendo sob um conceito de ambiente numa perspectiva unicamente material, em que se contabilizam os recursos da natureza, e reforçar processos de luta e de resistência frente ao modelo extrativista e seus impactos no nosso corpo-território. É uma forma de seguir avançando na conjunção de todas as lutas, de todas as resistências, de todos os saberes que temos na América Latina e no Caribe e também em nível global”.