Numa declaração conjunta em março deste ano, quando o mundo registrava os primeiros picos da pandemia de COVID-19, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional anunciaram um pacote de “ajuda financeira” de 160 bilhões de dólares a serem disponibilizados durante 15 meses aos países mais afetados pela doença.
De acordo com o presidente do Banco Mundial, David Malpass, os objetivos eram “diminuir o tempo da recuperação [econômica], criar condições para o crescimento, apoiar pequenas e médias empresas e ajudar a proteger os mais pobres e vulneráveis”.
Mas como a história existe para evidenciar a diferença abismal entre aparência e essência, é fundamental – no momento em que completam 76 anos – compreender a trajetória dessas duas instituições financeiras e o papel que elas continuam a cumprir na captura de países de economia dependente numa verdadeira armadilha do endividamento.
Esse é um dos objetivos da pesquisa “Endividamento, histórico de lutas e propostas alternativas nos países da América Latina e do Caribe”, desenvolvida pelo Jubileu Sul/Américas e que será lançada neste 13 de outubro (terça-feira) com debate ao vivo a partir das 16h pela página do Jubileo Sur/Américas com tradução simultânea em português.
Buscando apresentar um panorama regional do problema da dívida pública, a pesquisa investiga a situação atual e as principais características do endividamento de oito países da Nuestra América: Argentina, Brasil, El Salvador, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras e República Dominicana.
Não desconsiderando as distintas e complementares perspectivas que a análise desses países possa fornecer, a ideia fundamental é verificar como a armadilha da dívida está articulada com uma série de relações macroeconômicas, que envolvem inclusive a reprodução de problemas fiscais crônicos internos a cada país, ao mesmo tempo em que novas estratégias de subalternização das economias são impostas, com saídas governamentais que, de um modo geral, resultam em maior endividamento, interno e externo, alimentando a armadilha.
Elaborada pelo economista Helder Gomes, doutor em Política Social, a referida pesquisa está organizada em quatro capítulos.
A dívida como parte da estratégia imperialista
O primeiro – “A dívida na estratégia imperialista de dominação total” – discute os pressupostos estruturais da temática, analisa as doutrinas do Tio Sam e seus objetivos estratégicos, discute a crise mundial e o domínio do capital especulativo parasitário e aborda a (re)especialização produtiva e as políticas de integração da América Latina e do Caribe.
Traçando um histórico do desenvolvimento do capitalismo e das relações econômicas na região, a pesquisa demonstra que os países latinoamericanos e caribenhos, desde a segunda metade do século XIX até os dias atuais, passaram a participar de um modelo que consiste na transferência de riquezas para as principais nações imperialistas, a partir da extração desenfreada e do beneficiamento industrial em larga escala de patrimônios naturais, especialmente minerais metálicos, energéticos, insumos vegetais e alimentos.
Essas características, somadas a um rigoroso regime de exploração da força de trabalho assalariada mesclada com relações primitivas de trabalho, contribiu ao longo da história para, conforme destacado no estudo, “garantir as condições econômicas, sociais e políticas de manter as relações de subalternidade do desenvolvimento desigual imperialista, cujo principal objetivo tem sido a transferência de riquezas, em favor do capital organizado a partir das grandes potências mundiais”.
Além do financeiro
O capítulo 2 – “A dívida para além dos números” – joga luz sobre a questão da dívida não apenas sob o componente financeiro, mas também do ponto de vista da degradação ambiental vinculada à oportunidade de grandes negócios e da perda de soberania dos países dependentes sobre as decisões mais relevantes.
A respeito dessas questões, a pesquisa aponta que o fomento oficial ao controle privado das grandes empresas não se resume à instalação das plantas produtivas em si, mas que “gradativamente o Estado vem retirando seus instrumentos da gestão ambiental e, inclusive, das relações diretas com as comunidades tradicionais imediatamente atingidas, desdobrando-se também incentivos de toda sorte à reocupação mercantil de territórios demarcados e anteriormente protegidos”.
Nesse sentido, de acordo com a pesquisa, “a subalternidade aos interesses do grande capital se expressa também no completo abandono das comunidades tradicionais pelo aparato institucional do Estado, tendo, com isso, que se confrontar diretamente com a violência externa ao seu modo de vida. Os governantes vão desativando os aparelhos estatais de proteção, sequer prestando serviços básicos de assistência às comunidades expulsas de seu território tradicional, permitindo que as próprias empresas assumam funções de Estado durante o estágio de maturação dos projetos”.
América Latina e Caribe como laboratório do capital
O terceiro capítulo, intitulado “A evolução recente da armadilha do endividamento e repercussões específicas na América Latina e Caribe”, se dedica a olhar mais de perto os efeitos da intervenção imperialistas em três países da América do Sul, três da América Central e dois do Caribe. Nesses locais, frisa o estudo, “a percepção é de esgotamento total do modelo proposto a partir do Consenso de Washington, na medida em que a gestão do endividamento foi travada pela inversão dos resultados fiscais, bem como pela perda ainda mais absoluta de sua soberania sobre a política macroeconômica e sobre as decisões de investimento”.
Também nesse capítulo fica visível como a transmutação do conceito de nações em desenvolvimento para economias emergentes, como forma de tratamento dos países da região pelas agências multilaterais, não passava de uma ilusão retórica logo desfeita pelos inúmeros problemas estruturais aflorados. Conforme destacado em um trecho do estudo, “vale a pena observar como que, ao longo do período recente, diferente dos discursos oficiais em torno da necessidade de austeridade fiscal como a única solução para os problemas econômicos, a contínua conversão de dívida externa privada em dívida pública interna acabou travando a capacidade de gestão macroeconômica de muito dos países do continente”.
A pandemia da dívida
Feito esse percurso histórico do capitalismo, das intervenções imperialistas e da armadilha do endividamento na América Latina e no Caribe, a última parte da pesquisa tece considerações sobre a crise atual (econômica, política, social, ambiental, cultural e civilizatória), reunindo elementos que alertam para os perigos da armadilha da dívida no contexto da pandemia do novo coronavírus e, ao mesmo tempo, refletindo sobre as alternativas possíveis.
Como conclusão, fica expresso na pesquisa que “as dívidas das nações subalternas são ilegítimas e odiosas, não por ferir a legalidade, que tem sido ajustada a cada momento que os ajustes especulativos assim o exigem, mas por criar condições desumanas de relações sociais, retirando dos povos a sua soberania, especialmente em relação à sustentabilidade do planeta para as gerações futuras. Assim, superar a pandemia da dívida significaria superar as próprias relações do capital mundializado”.
Confira a íntegra do estudo: