Cimi, entidade membro da Rede Jubileu Sul Brasil manifesta solidariedade aos Kaiowá e Guarani e exige do Estado medidas emergenciais de proteção e a efetivação de direitos historicamente sonegados.
Por assessoria de comunicação Cimi
“Quero exprimir a minha proximidade nestes momentos de sofrimento, assegurando-lhes de meus sufrágios por todos os membros do Povo Kaiowá e Guarani já falecidos e de minhas preces ao Altíssimo para que se encontrem caminhos que possam garantir-lhes uma vida tranquila e pacífica na terra em que vivem” – Papa Francisco, em carta aos Kaiowá e Guarani
Profundamente consternados com a morte brutal da Ñandesy Sebastiana Galton, 92 anos, e de seu companheiro Rufino Velasquez, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) faz-se próximo aos familiares das vítimas e de todo povo Kaiowá e Guarani, neste momento de dor e indignação. E exige não apenas rigor nas investigações dos fatos, mas principalmente, avanços concretos e soluções efetivas para a crise humanitária a que são submetidos estes povos.
Os corpos da liderança religiosa e seu companheiro foram encontrados carbonizados na casa onde viviam, nesta segunda-feira (18), na Terra Indígena Guasuti, localizada no município de Aral Moreira, no Mato Grosso do Sul.
Familiares relataram a nossa equipe – que foi até à Comunidade Guarani e Kaiowá ao tomar conhecimento do ocorrido -, que o casal vinha sofrendo ameaças nos dias que antecederam sua morte, e que esta situação, inclusive, exigiu medidas de prevenção em suas rotinas, como se recolher ainda durante o dia e manter as portas bem trancadas durante à noite. Disseram também que as divergências circunvizinhas, envolvendo pessoas próximas, intensificaram-se durante os últimos meses, por motivos relacionados à falta de terra, ao arrendamento e à intolerância às práticas religiosas tradicionais que permeiam todas estas realidades. Membros da comunidade acreditam que eles possam ter sido violentados e mortos antes do incêndio que destruiu sua casa e seus corpos.
Além disso, demonstraram grande preocupação com a queima do Xiru da Ñandesy Sebastiana, reconhecida por guardar incontáveis rezas tradicionais (mborahé, ñembo’e) Kaiowá. Os Xirus são uma espécie de oratório, que porta seres e poderes sobrenaturais e que quando queimados espalham doenças e males comunitários.
Os fatos narrados pelos familiares de Dona Sebastiana revelam, por um lado, uma complexa situação de intolerância religiosa que têm escarnecido, vilipendiado e matado – espiritual e fisicamente – Ñanderu’s e Ñandesy’s por toda a territorialidade Kaiowá e Guarani; e por outro, a situação trágica de desestruturação social de uma sociedade, cuja causa continua sendo resultado de deslocamentos forçados, do processo de confinamento e do não acesso efetivo desta população aos seus territórios tradicionais. Agora, tal realidade é agravada fortemente por arrendamentos ilegais de áreas por não indígenas, que foram incentivados pelo governo Bolsonaro e que catalisam conflitos internos pelos poucos espaços existentes.
O fenômeno religioso em todas as sociedades humanas consiste em mobilizar as forças espirituais, sejam elas consideradas boas ou não (bênção e maldição), conforme as necessidades, os anseios e as esperanças de um povo, como estratégia de conquistas sobre desafios, perigos e crises. Na prática, elas ritualizam o otimismo humano em tempos de perseguição, estresses sociais, dificuldades existenciais, das relações com o meio ambiente, dos desejos, das vontades e da própria morte que permeiam todas as sociedades.
Assim, observa-se no caso das práticas religiosas tradicionais dos Kaiowá e Guarani um ato de resistência frente aos múltiplos processos de extermínios perpetrados contras suas comunidades. Também é possível observar a existência de uma fronteira tênue e nociva entre suas mobilizações espirituais tradicionais, dada desde tempos imemoriais entre parentelas, e a invasão violenta das práticas exterminadoras e fundamentalistas de igrejas neopentecostais.
O Cimi há décadas denuncia a presença e os efeitos destruidores que estas seitas fundamentalistas representam e promovem entre os Kaiowá e Guarani, ao suplantar todo um sistema de crenças, desprestigiar as lideranças religiosamente constituídas e, criminosamente, incentivar a destruição de ambientes e objetos considerados sagrados por estes povos. Há uma situação de emergência religiosa nos territórios Kaiowá e Guarani, em que todos os Ñanderu’s e Ñandesy’s, que resistem a este etnocídio, correm altos riscos de serem mortos por motivos fúteis, apenas por serem e representarem o que são, dada por vontade de suas crenças.
Faz-se urgente e necessário, da parte dos governos em suas três esferas, a criação de uma rede ampla de proteção destes líderes religiosos. Bem como, um amplo processo de incentivo às práticas tradicionais Kaiowá e Guarani, por meio de políticas públicas que incentivem e valorizem seus conhecimentos e que sejam elaboradas e executadas pelos próprios Ñanderu’s e Ñandesy’s. Trata-se de promover uma nova onda de resistência religiosa indígena e um novo movimento de “desbatismos não indígenas” entre esses povos, como já registrado em épocas anteriores.
Não há mais desculpas para a omissão do Estado brasileiro em agir nas causas estruturais dos problemas que foram causados aos Kaiowá e Guarani, como promover a demarcação, ampla e definitiva, de todos os seus territórios. Quantos corpos ainda serão necessários?
À querida Loide, seus irmãos e irmãs, filhas da Ñandedy Sebastiana com o grande Ñanderu Atanásio Teixeira (morto em abril passado), nosso mais profundo sentimento de solidariedade e incondicional compromisso com suas dores, vidas, terras, lutas por justiça e esperanças.