A evidência embaraçosa do Banco Central, por motivos nada populares, coloca-nos a emergência de trazer para o debate as consequências da livre movimentação do sistema do capital em todas as suas dimensões. Em função desta blindagem dos extraordinários lucros financeiros, a autonomia do Banco Central mantem a política econômica do país sob uma camisa de força fiscalista que inviabiliza a retomada de políticas sociais, da política industrial e tecnológica e de investimentos essenciais em saúde, habitação e educação.
A ideia de tornar o Banco Central (BC) autônomo vem desde o governo Fernando Henrique Cardoso e tornou-se real no governo Bolsonaro, sob a justificativa de evitar interferências políticas em sua gestão. Outras justificativas liberais se somam a esta: “quanto maior a autonomia de um órgão que é regulador do sistema financeiro e da política monetária do país, mais credibilidade esse país terá, além de não ser impactado por pressões e instabilidades políticas, fazendo com que a economia cresça de forma saudável”. Na verdade, retirar o banco do controle do Estado é deixar essa função para o sistema financeiro internacional.
Indicado pelo ex-presidente para presidir o Banco Central até 2024, Roberto Campos Neto, que tem 18 anos de passagem pelo Banco Santander, afirmou em recente entrevista, que seu objetivo é bancarizar a financeirização da sociedade e da vida cotidiana.
O Banco Central, como autoridade monetária máxima no país, tem como uma de suas funções mais importantes, definir a taxa básica de juros, por meio do Comitê de Política Monetária (COPOM). Assim, ele assegura a estabilidade da moeda e do sistema financeiro. E isso está diretamente vinculado ao crescimento da economia, do emprego e da renda. Essa taxa é um dos principais indicadores da inflação, a vilã do preço dos produtos, além de nortear outras taxas no mercado, como a do cartão de crédito, do crediário e do cheque especial, provocando o endividamento pessoal. Essas taxas são hoje, as maiores responsáveis pelo adoecimento mental e, portanto, da desarmonização familiar que atinge em cheio a população pobre e de classe média desse país, afetando suas vidas e as sociabilidades.
Pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Comércio em novembro de 2022, constatou que 78% das famílias no país se encontram endividadas. De que adianta um país estar alinhado à economia com práticas ditas “modernas” (liberais) de gestão econômica, como querem nos fazer crer, se a sua população está totalmente alienada de uma proteção básica para a reprodução da vida? O que o BC dos Estados Unidos (EUA) e do Reino Unido fizeram em relação à “práticas modernas” de gestão, que viesse evitar a situação crescente de pobreza? Nos EUA a inflação tem deixado mais gente na miséria, sem conseguir consumir para sobreviver – aumento alarmante dos alimentos, gasolina e outros itens básicos. Da mesma forma se encontra o Reino Unido, com suas finanças em frangalhos. O que eles têm em comum? Aumento exacerbado da taxa de juros, ditada por um BC autônomo.
É preciso que todos tenham noção que o Banco Central é o braço financeiro do Tesouro, ou seja, é o principal instrumento do Estado para regular o mercado financeiro e impedir ataques à moeda nacional além de prevenir possíveis sabotagens da política monetária e de crédito do país. A determinação do BC “independente” em subir juros, não impede a escalada inflacionária, faz subir a dívida e diminui as margens para investimentos essenciais e estratégicos.
A inflação não é de demanda e sim de oferta, por conta da desorganização das cadeias produtivas e da exposição internacional do país que torrou suas reservas no governo Bolsonaro. Inflação é, antes de tudo, conflito distributivo; a forma e a intensidade do combate a ela definem quem ganha mais e quem perde mais. Os novos grupos bilionários brasileiros, nutridos por políticas de austeridade e de hipervalorização de ativos financeiros, defendem a austeridade fiscal em função da continuidade das escandalosas taxas de concentração de riqueza, precedida de desfalques financeiros e incessantes fusões e aquisições por grupos financeiros transnacionais.
O Banco Central foi blindado da influência do Executivo, mas não está blindado da interferência política dos grandes conglomerados financeiros.
A política de “independência” e mesmo “autonomia” do BC, defendido e repetido exaustivamente pela mídia corporativa, na prática, significa a redução ou mesmo a impossibilidade de o povo interferir nessa política macroeconômica. Isso não pode perdurar por muito mais tempo! Por essa via, eles terão uma rentabilidade garantida, a partir do controle definitivo da política de juros e de câmbio, exercido diretamente pelos representantes do capital financeiro. No que se refere aos juros, uma inflação associada a custos que cresceram por diferentes motivos, traz para a população uma situação ainda mais dramática: aumento do desemprego, renda do trabalhador e trabalhadora em queda, preço dos alimentos incompatível com o poder de compra e, portanto, um aumento do percentual de desalentados, a não ser que achemos que o emprego precário, a uberização do trabalho, seja a solução.
Iniciativas como da Auditoria Cidadã da Dívida em sua “Campanha pelo Limite dos Juros no Brasil”, através do PL 104/2022, que propõe um limite máximo para as taxas de juros, assim como acontece em cerca de 80 países no mundo, é um dos caminhos para acabar com essa especulação desenfreada. Os altos juros praticados pelo BC é um dos principais responsáveis pelo crescimento da dívida pública, além de ser um dos maiores vilões das micro e pequenas empresas.
Vale salientar que o ordenamento financeiro no Brasil está submetido apenas a 10 grandes bancos privados, onde a maioria é estrangeiro. Ademais, Itaú e Bradesco têm muitíssimas ações vendidas a estrangeiros. Destes, o BTG Pactual, além de ser um dos maiores do Brasil, é um dos principais bancos de investimentos da América Latina. O Santander, em 2021, ficou entre os três bancos com maior rentabilidade no mundo.
Se quisermos ter um projeto coletivo em que os grandes capitalistas e seus feitores não continuem sugando nossas inteligências, nossa força de trabalho, nossos corpos e nossas vidas, precisamos pensar no que temos que recuperar como forças orientadoras de nossas lutas presentes e futuras.
A autonomia do Banco Central e sua política de juros não está desassociada do nosso dia a dia. Dos preços que são pagos na cesta básica, no arroz e no feijão, na alta dos preços. Tudo está interligado. A ausência de postos de trabalho está intrinsicamente relacionada com a ausência de investimentos, consumo das famílias e gastos do governo, indicadores que são influenciados diretamente pela taxa de juros. O mercado não fica nervoso, quem fica nervoso são os banqueiros. Esse debate também é nosso, do povo brasileiro, que está perdendo a paciência de esperar!
Quem precisa de autonomia são as pessoas e não os bancos!
Para que a vida se sustente, a economia deve ser social, ecológica e solidária!
A vida acima da dívida! A dívida é com o povo e não com o mercado!
São Paulo, 15 de fevereiro de 2023