Para refletir sobre o tema, faz-se necessário inicialmente, tratar da dívida pública, para em seguida, mostrar as consequências relacionadas à vida das mulheres.


Dívida Pública é a soma de todas as dívidas contraídas pelo Estado (governo federal, estadual, municipal e empresas estatais) como objetivo de financiar gastos não cobertos com a arrecadação de impostos. É formada tanto por empréstimos internacionais quanto pela emissão de títulos do governo comprados por investidores, com o objetivo de obter lucros futuros por meio de juros.


O problema da Dívida Pública está mais presente do que nunca. Já não resolvem empréstimos para cobrir os desequilíbrios nas contas públicas nem favorecer o crescimento dos países. O serviço da dívida tem extrapolado a capacidade dos países de, ao mesmo tempo, cumprir os compromissos assumidos com o sistema financeiro e fomentar o desenvolvimento interno.


A Dívida vem do período colonial. Quando foi declarada a independência, a Inglaterra, para reconhecer o Brasil como nação, o obrigou a assumir as dívidas creditadas a Portugal. O grande endividamento vem com a década de 1970, com a contratação de empréstimos para expandir a economia nacional. Durante a ditadura, o governo realizou grandes investimentos em infraestrutura voltados para a indústria, mineração, rodovias, esquecendo as questões sociais, à custa de um alto endividamento.


Nos anos de 1980, a Dívida dos países em situação de pobreza se eleva com a imposição de Programas de Ajuste Estrutural para o cumprimento dos compromissos assumidos com o Fundo Monetário Internacional – FMI. Empréstimos de Ajuste no Brasil iniciam-se na década de 1990, onde começa a submissão do governo às metas de Superávit Primário (recurso que o governo retira do Orçamento para cumprir o compromisso assumido com o FMI). Desde então, o endividamento passou a ser por emissão de títulos e quem compra passa a ser credor da dívida brasileira – bancos, fundos de pensão nacionais e estrangeiros, bancos de investimento, dentre outros.


A Dívida é paga com o dinheiro dos impostos. É por isso que a população fica sem os serviços que o dinheiro dado aos credores da dívida poderia financiar. Dentre tantos credores, as mulheres estão no patamar de principais credoras de uma enorme dívida histórica, ecológica, social, financeira e de gênero, que tem se acumulado ao longo da colonização patriarcal. Do nosso ponto de vista, temos clareza de que enquanto vivermos sob o jugo patriarcal, a dívida relacionada a gênero não será reconhecida nem evidentemente restituída. Ela consome hoje, mais da metade do orçamento federal, cujas consequências para as populações vulnerabilizadas vão, desde a precarização da vida até a sua perda. A camisa de força em que está enredada, impede qualquer uso do orçamento e de qualquer política de regulação social que não seja aquela voltada para a obtenção de rentabilidade máxima em movimentações financeiras. É através desse mecanismo que o Brasil sofre uma sangria brutal nas finanças públicas. Isso se dá com o pagamento de juros, amortizações e rolagem da dívida, tanto através dos recursos que são retirados do orçamento como através da emissão de títulos públicos. Dessa forma, esse ciclo vicioso (quanto mais se paga, mais ela cresce) inviabiliza qualquer desenvolvimento soberano, sustentável e justo. Os Juros pagos vêm do Superávit Primário e seu pagamento é decidido sempre em detrimento dos gastos com políticas sociais.


Os cortes se concentram em setores profissionais com um número muito expressivo de mulheres como: saneamento, educação, serviço social, saúde. É justamente na redução dos serviços públicos na área social, que as mulheres perdem na justiça de gênero.


O Brasil sempre foi aluno exemplar na efetivação das políticas de Ajuste, basta que se observe a forma como os territórios ricos em minérios têm sido rateados com multinacionais; as invasões de territórios indígenas e quilombolas; o envenenamento da terra e da água por agrotóxicos; a privatização da água e entrega de estatais às grandes corporações. Não seria difícil concluir que a política de Ajuste dos sucessivos governos, aliada ao patriarcado e ao racismo, seja a maior contribuinte para a exclusão das mulheres dos processos de desenvolvimento. Resultado: mulheres empobrecidas em função dos cortes nas áreas sociais, sobrecarregadas pelo trabalho não remunerado e de cuidados, com pouco tempo para atividades que lhes proporcionem um aumento da renda e para lutar por novos direitos.


A injusta divisão sexual do trabalho dá margem a tudo isso. A Dívida afeta, principalmente a vida das mulheres porque cada vez que se paga juros, mais se deixa de destinar recursos para saúde, educação, segurança alimentar, previdência…São as mulheres, as primeiras a serem demitidas e as mais sacrificadas quando faltam serviços essenciais. Se aumenta o desemprego nas áreas urbanas, são as primeiras que perdem. Quando o homem é demitido e ela fica, vai ganhar menos e em condições de trabalho mais precárias. Se a renda diminui, sua carga de trabalho aumenta. O padrão alimentar reduz, aumentando o risco de doenças na família, sobrecarregando as mulheres com o trabalho de cuidados. A violência doméstica tende também a aumentar, pois o desemprego contribui para rupturas afetivas no âmbito familiar. Nas áreas rurais, juntam-se a esses fatores: a falta de crédito para a produção dos quintais, o êxodo dos agricultores para os centros urbanos, transferindo-se para as mulheres toda a responsabilidade com a família. A submissão a jornadas exaustivas de trabalho e a ausência de perspectivas, leva ao aumento do consumo do álcool e outras drogas, resultando num aumento da violência doméstica, além de provocar entristecimento e depressão.


As consequências nefastas para a vida das mulheres desencadeadas pela dívida, têm como primeira explicação, uma visão naturalizada de que a mulher é inferior ao homem em todos os aspectos.


Em todas as sociedades, inclusive as mais avançadas, no que se refere à igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, são sempre as mulheres que irão manter o trabalho de cuidados e de reprodução, uma vez que seu trabalho é invisibilizado e desvalorizado.


Para o capitalismo obviamente, não interessa reverter essa ordem, pois que a expropriação do trabalho e o tempo das mulheres maximiza o lucro. Do mesmo modo, o controle do corpo em relação a direitos sexuais e reprodutivos e o tratamento dado a este tal como mercadoria, também maximiza o lucro, pois que garante a perpetuação de uma mão de obra barata e de fácil consumo. A prostituição, a pornografia, o tráfico de mulheres e a utilização destas como objeto de propaganda, são exemplos dessa visão sobre as mulheres. Desse modo, torna-se possível entender que a convicção sobre o lugar de subalternidade das mulheres na sociedade, é que orienta governos e instituições financeiras a se utilizarem, no desenho de suas políticas, do trabalho não remunerado e/ou mal remunerado destas, para canalizar mais lucros para o sistema financeiro.

Subalternas e inferiores mas com o mérito de serem tidas na atividade
reprodutiva, como mais eficientes, mais responsáveis, mais econômicas e mais baratas. Isso as torna funcionais à manutenção desse sistema de dominação financeira. Na verdade, o modo como a sociedade se organiza em base aos padrões de gênero, leva a perceber que a recusa por parte do Estado em tomar como princípio constitucional a igualdade de gênero, definindo políticas de superação das desigualdades e de promoção da mulher, é o que garante sua sobrevivência a crises econômicas. Enfim, quanto mais o trabalho e o tempo das mulheres é explorado, mais os ricos se beneficiam.


Em tempos de retrocessos e sob uma ordem fascista, há que pensar em estratégias de comunicação e de resistência num primeiro momento, que possibilite aos movimentos de mulheres uma reflexão à luz da história, tanto para acumular forças como para, de modo articulado com outros movimentos, desenvolver sistemas de proteção que lhes permita encontrar saídas humanitárias. Trata-se de lutar para evitar que a ideologia patriarcal e o modelo único de família, baseado em uma única classe e em uma única raça prosperem.

Magnólia Azevedo Said, educadora feminista, membro do Esplar-Centro de Pesquisa e Assessoria, associado ao Jubileu Sul Brasil


*Esse texto foi originalmente publicado no Jornal Conquistas, uma edição da Pastoral Operária Nacional

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