Entre os dias 20 e 23 de outubro, o Ministério Público do Trabalho (MPT) promoveu uma ação como parte do projeto de erradicação do trabalho escravo no Brasil. Em parceria com o Somos Livres e apoio da UNICAMP – Cátedra Sergio Vieira de Mello, o “Não Somos Escravos da Moda” tomou o Casarão Paulista 1811 com palestras, exposição fotográfica e instalação interativa simulando uma fábrica têxtil como forma de conscientizar a população quanto a temática. Imigrantes e refugiados foram lembrados pela vulnerabilidade ao trabalho escravo.
O projeto aconteceu concomitante à Semana da Moda em São Paulo, contrastando as faces dessa indústria de consumo. No evento, peças de roupas e acessórios confeccionados por migrantes ficaram expostos no estande do Deslocamento Criativo.
O trabalho escravo fere condições básicas de direitos humanos. Em situações análogas à escravidão, pessoas são submetidas a horas laborais exaustivas, degradantes, sem o mínimo de respeito quanto às normas de saúde, higiene, segurança, alimentação e outras condições.
De acordo com levantamento feito pelo The Global Slavery Index, que fornece uma classificação do número de pessoas na escravidão moderna por país, a indústria têxtil é uma das áreas de escravidão moderna que mais cresce no Brasil. Tudo para alimentar o consumo de grifes e varejistas, enquanto maltrata parte da população que foge da fome ou busca melhores condições de vida.
O indicador também aponta que, em São Paulo, há casos de migrantes que são explorados, bem como aqueles que foram trazidos com documentos falsos.
Gustavo Tenório Accioly, procurador do Ministério Público do Trabalho, e responsável pela organização do evento, disse que parte dos trabalhadores de oficinas de costura são migrantes, sejam eles nacionais ou internacionais, e que “diante da situação de vulnerabilidade e invisibilidade, não conseguem denunciar aos órgãos públicos”. Por isso, foram desenvolvidas uma série de atividades com a finalidade de empoderar essas pessoas, tanto brasileiros quanto imigrantes e refugiados.
O espaço reservado à exposição de itens foi ocupado por produtos confeccionados por imigrantes: designer de moda, bolsas feitas em couro, bonecas feitas à mão e acessórios, como colares e adereços para a cabeça. A roupa comercializada era feita com tecidos africanos – uma forma de gerar oportunidade de renda, fortalecendo a autoestima no sentido da percepção de que este é um mercado que eles também podem atuar e viver.
Outra atração do evento era a exposição “Costurando Dignidade”, do fotógrafo Chico Max. Ele trouxe retratos de mulheres que já foram exploradas em oficinas de costura, sendo a maioria bolivianas. Ligado à causa humanista, Chico Max já realizou uma mostra com fotografias de imigrantes em 2016.
Preocupados em fazer com que o público imergisse na realidade vivida por essas pessoas, uma instalação interativa foi montada simulando os trabalhadores presos ao ofício de condições precárias. “O que está por trás da roupa que você veste?”,é a provocação direcionada ao público ao passar pela instalação.
Aproveitando o dia de domingo (21), muitos entravam no Casarão da Paulista curiosos com a fachada: #NãoSomosEscravosdaModa. Sem nenhum momento em que permitisse tranquilidade entre os corredores.
A estudante de Farmácia Samantha Pires dos Santos, 21, foi fisgada pelo tema e se surpreendeu com o projeto, dizendo ser um tema atemporal e de emergência.
“A gente consome tudo de forma tão desenfreada, e não sabemos das vidas envolvidas por trás de uma roupa ou aparelho celular”.
“Deslocamentos globais, compromissos locais”: pensando soluções
Durante todos os dias do evento, palestras e mesas de conversa foram organizadas para que o diálogo fosse aberto sobre os variados temas dentro do tema, sempre com pontuações a imigrantes e refugiados. No domingo, dia 21, o assunto tratado entre os presentes foi “Deslocamentos globais, compromissos locais”, abordando o compromisso de receber as “pessoas que vem de fora” nos países de destino.
Foi pensando na forma como imigrantes podem obter espaço para comercializar seus produtos no local em que escolhem ir, quando podem escolher, que se propôs uma palestra sobre os desafios e responsabilidades na inclusão dessas pessoas no mercado da moda. Existem migrantes atuando na área e são poucos conhecidos pela falta de valorização, ou mesmo, por não saberem como atuar na divulgação dos trabalhos.
Maria Nilda Santos, coordenadora do Deslocamento Criativo, conta que quem atua nessa área quer revelar no que pode contribuir, além de chamar a atenção das empresas maiores para criarem meios de apoiar os migrantes.
“Para isso, é preciso valorizar os pequenos produtores, aqueles que não possuem grande estrutura, mas que produzem peças excelentes e com características interculturais. Acreditamos na contribuição da diversidade, na valorização da mão de obra mais artesanal como meio sustentável de ser e existir”.
“A tendência de todos os Estados modernos é afastar o diferente, é afastar a alteridade, é expulsar o outro. Por meio do discurso de ódio, de violência e tudo mais”. A fala é do filósofo e escritor Brunno Almeida Maia, em provocação aos presentes em como pensar na dinâmica em que se propõe o universalismo ao mesmo tempo em que há políticas e discursos excludentes.
Ele é taxativo ao afirmar que não adianta só “sonhar” em rodas de conversas, propondo respostas, sendo que a qualquer momento pode haver uma medida provisória ou uma lei que proíba a entrada de estrangeiros no país.
“O desafio de pensar globalmente, pensar localmente, não é só um desafio para uma roda de conversa ou para o coletivo, é um desafio também individual. O compromisso tem que ser afirmado das duas pontas. Tem esse momento de acolhimento, daquele que vem de fora, mas, também, pressionar para que essas estruturas se modifiquem, e aí essa pressão, tem que ser pressão em todas as formas possíveis; desde a indústria até a política em termos de Estado”, enfatiza.
Em contrapartida, alguns grupos, como a TexPrima, do Bruno Henrique Medeiros Souza, procuram dar um espaço acessível a pequenos produtores. Não só pelos tecidos e ambientes para costura, mas, também, no marketing.
“A gente precisa valorizar a galera que tá começando, o novo, o pequeno. Com o deslocamento criativo, com apoio, nossa intenção é, realmente, além da matéria-prima, estarmos presente em outras etapas, de vocês, estilistas. Por exemplo, como é que a gente pode criar meios de comercialização para quem está começando e não tem um meio de comercializar? Como a gente pode unir você a pessoas que sabem costurar e outros meios de produção?”. E conclui: “Quando a gente tá falando de acolher o imigrante, acolher o pequeno, fica parecendo que a gente tá falando apenas de algo assistencial. Não é”.
Morando no Brasil há cinco anos, o refugiado Sírio Nour Koeder é estilista e figurinista. Assim como alguns refugiados e imigrantes, veio ao Brasil na busca de oportunidade. Saiu do país pela guerra que assola a Síria desde 2011. Ele comenta que a chegada é difícil, por ter que recomeçar num país com outra língua, outra cultura. “Fazer contatos, trabalhar e achar oportunidade.
Projeto da Nilda ajuda a dar oportunidade para recomeçar, sem oportunidade não consegue começar”, explica ao falar sobre o Deslocamento Criativo. Além da dificuldade em achar tecidos específicos e de importar produtos da Síria, fora os preços altos, menciona a adaptação que precisa fazer pelo clima brasileiro, trazendo características dos cortes do Oriente Médio. “Alguns refugiados que chegam no Brasil, às vezes, não precisam de ajuda financeira, precisam de oportunidade para fazer parte da economia criativa”.
Oportunidade é a palavra. Para que pessoas não sejam mais vítimas de uma indústria que escraviza. Como mencionou o filósofo Brunno Maia: “a dignidade humana tem que vir em primeiro lugar”