Por Karla Maria, da Rede Jubileu Sul Brasil
“Não nos permitiram ter missa de Natal e Ano Novo. É incrível que, num país que se diz cristão, prisioneiros não possam participar do sacrifício do Senhor. Entretanto, ninguém pode nos impedir de rezar, de agradecer a Deus tudo que temos vivido à semelhança de seu Filho”, escreveu Carlos Alberto Libanio Christo a seus pais, no dia 5 de janeiro de 1970, da cela 7 do Presídio Tiradentes, em São Paulo.
Passados quase 50 anos, essa e outras constatações flagrantes da quebra dos direitos no cárcere estão contidas em muitas cartas de frei Betto a seus pais, escritas da prisão durante a Ditadura Militar (1964-1985). Estão disponíveis no livro Cartas da Prisão, publicado pela Companhia das Letras.
Históricas, estas linhas revelam o dia a dia dos presos políticos, as leituras feitas, a partilha da Palavra de Deus, as visitas e solidariedade recebidas, as omissões da Ditadura, a tortura vivida, a esperança compartilhada. “Logo que fui preso, mantido na cela solitária durante quase um mês, duvidei que escapasse com vida. Sentia, porém, uma alegria interior em sacrificar-me pela esperança. Em outras palavras, percebia que a promessa feita em Abraão e em Jesus Cristo é irreversível. Daí a garantia de nossa luta”, escreveu em 28 de março, da mesma cela 7, naquele 1970.
Estas palavras ganham relevo e peso em tempos em que a democracia e liberdade de expressão, de ser e viver, estão relativizadas no país. Em tempos em que os fatos históricos são questionados, e em que torturadores confessos dos tempos de chumbo são conclamados a heróis da nação.
E foi para falar sobre estes novos tempos que o dominicano frei Betto nos concedeu esta entrevista exclusiva. Mineiro de Belo Horizonte, filho de Maria Stella e Antônio Carlos, Betto tornou-se presidente da Juventude Estudantil Católica (JEC) em 1963, no mesmo período em que iniciou os estudos em jornalismo.
Em 1965 entrou para o convento da ordem religiosa dos dominicanos e ali estudou filosofia. Trabalhou na revista Realidade e no jornal Folha da Tarde.
Em 1969 foi preso dada a sua militância e oposição ao regime autoritário. Foram quatro anos de cárcere detalhados dolorosamente em suas obras e depoimentos. Acompanhou, em 1977, as greves dos operários do ABC paulista, se aproximou do então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva (1945-), tornando-se assessor especial dele em 2003 e 2004, quando presidente da República. Atuou e atua junto aos movimentos e pastorais sociais.
Escreveu cerca de 60 livros, muitos constituídos de memórias, como é o caso de Batismo de Sangue, em que rememora as trajetórias de quatro jovens dominicanos, entre eles a dele próprio, ocupando-se mais da de Frei Tito de Alencar Lima (1945-1974), dominicano que, após ser torturado, se exila na França.
Na obra, que originou um filme homônimo, há descrições bastante objetivas acerca das torturas sofridas, mas que aqui ele não encontra espaço para detalhar e nós tampouco para dimensionar.

Foto: Ceseep

Aos 74 anos de idade, frei Betto falou exclusivamente à Rede Jubileu Sul Brasil direto de Roma. Na entrevista, discorre sobre política, fé, família, sua vida e as voltas históricas deste país que só quem as protagonizou tem a legitimidade de avaliar. Nesta conversa, o mineiro sugere a leitura das obras do professor israelense Yuval Noah Harari, “pois nos permitem entender melhor o momento atual da humanidade e os desafios do futuro”.
1. Cerca de um terço dos eleitores brasileiros elegeram Jair Bolsonaro (PSL) à presidência da República, um candidato de discurso, em momentos, raivoso, baseado em premissas que parecem fugir do Evangelho, mas que ainda assim arrebataram grande apoio e votos entre cristãos. Como explicar isso? O antipetismo falou mais alto?
Sim, o antipetismo falou alto e recebeu forte incremento das fake news, remetidas, aos milhões, a smartphones de eleitores brasileiros, sem que a Justiça leitoral pudesse controlar essa nova modalidade de “caixa dois” e de subversão da democracia. Como se constata, dois terços dos eleitores não votaram em
Bolsonaro.
2. Em um de seus últimos discursos antes das urnas no segundo turno, Bolsonaro falou a uma multidão na Avenida Paulista (via transmissão on line) que os “esquerdistas” seriam banidos ou presos no país durante seu governo. Após ser eleito, ressaltou que a afirmação é dirigida à cúpula do PT e do PSOL. Quais as consequências de uma fala dessa para a democracia brasileira?
Enquanto deputado e candidato a presidente ele nunca teve respeito pela ordem democrática. Por isso emitiu opiniões absurdas, como esta de que não suportará nenhuma forma de oposição, o que revela seu caráter antidemocrático e autoritário. Não me surpreende, pois ele sempre defendeu a ditadura militar, que
tanto mal fez ao Brasil entre 1964 e 1985.
3. A postura agressiva do presidente eleito pode encorajar atos de violência contra as “minorias”?
Sim, os fanáticos que o apoiam já começaram a atacar aldeias indígenas e acampamentos de sem-terra. Temo que a eleição dele se assemelhe à de Hitler na Alemanha em 1933. Vejam o filme Cabaret, estrelado por Liza Minelli, que mostra a ascensão do nazismo.
4. E na Igreja Católica? Observamos uma polarização muito grande entre os fiéis e até uma marginalização das pastorais sociais que se colocam em defesa dos direitos humanos. A fala de um presidente da República pode dividir também os membros da Igreja Católica?
A CNBB e até o papa Francisco têm recebido críticas de parte de seus fiéis… Faz tempo que a Igreja Católica está dividida. Bolsonaro disse publicamente que “a CNBB é a banda podre da Igreja Católica”. E não vi a direção da conferência episcopal dar uma resposta à altura. Pelo contrário, em seguida o cardeal do Rio, dom Orani Tempesta, o recebeu em sua casa.
5. Os direitos humanos são outro conceito que parece banalizado em nossa sociedade. Por quê?
Porque não interessa ao capitalismo a defesa dos direitos humanos, uma vez que este sistema é intrinsecamente opressor e violador de tais direitos. Vide o que os governos dos EUA fizeram e fazem em Guantánamo (Cuba), Iraque, Líbia, Afeganistão e, agora, na fronteira com o México.
6. O senhor já viveu a Ditadura Militar. Foi preso duas vezes e chegou a ser torturado na primeira prisão. Nestes tempos, muitos dizem que os livros de história inventam, que os jornalistas mentem sobre os fatos de 1964 a 1985. O senhor poderia nos dizer –além dos livros – o que é ser torturado? Por que foi preso?
Não haveria espaço aqui para responder a esta pergunta. Aconselhe os leitores a lerem meus livros Cartas da Prisão (Companhia das Letras), Batismo de Sangue e Diário de Fernando – Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira (ambos editados pela Rocco). Fui preso em 1964 por integrar a direção nacional da Ação
Católica, considerada subversiva pelos militares que deram o golpe de Estado naquele ano. E preso novamente em 1969, por dar guarida e fuga do Brasil a perseguidos pela ditadura.
7. Qual o sentimento do senhor, que viveu tudo isso, e hoje, em 2018, ver um presidente da República ter na figura de Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi um coronel do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um herói?
Sentimento de indignação, sobretudo com o nosso sistema judiciário que, ao contrário do que ocorreu no Chile, na Argentina e no Uruguai, não condenou os civis e militares que, em nome do Estado, torturaram e assassinaram. Ao reverenciar o coronel Ustra, notório torturador, o novo presidente da República
revela bem o seu caráter.
8. Bolsonaro repete o método Trump de governar via redes sociais, ridicularizando e criminalizando a imprensa e seus opositores, com um discurso protecionista. O senhor vê ameaças ao continente americano, aos imigrantes?
Mais do que isso, vejo ameaça à democracia. Sem imprensa livre, sem livre manifestação de pensamento, o Brasil cairá de novo em um regime autoritário que, com certeza, trará grande sofrimento ao nosso povo.
9. As notícias falsas, como o tal “kit gay” e de que o país se tornaria uma Venezuela, surtiram efeito nas eleições? Como avalia esse cenário de eleições e fake news?
As notícias falsas têm o poder de fazer a cabeça de muitos brasileiros que, de antemão, são preconceituosos e dispostos a acatar “tudo que o nosso rei mandar”. Uma velha tática de domínio das pessoas é incutir nelas o medo. Assim, elas se predispõem a trocar a liberdade pela segurança.
10. Em entrevista ao jornal O Tempo, em 2014, o senhor afirmou que “todo cristão é comunista sem saber”. Pode nos explicar e dizer porque nessas eleições o ódio ao comunismo surgiu tão forte?
O comunismo nem mais existe, mas Bolsonaro e seus asseclas exploram esse fantasma para assustar muita gente que foi educada na ideia de que o comunismo é o inferno. Inclusive gente que, hoje, vive no inferno da miséria, do desemprego, da exclusão social. Ele pretende governar semeando o terror.
11. O senhor fez parte de um dos governos do Partido dos Trabalhadores. Ajudou na elaboração do programa Fome Zero e trabalhou como assessor especial do ex-presidente Lula (2003 e 2004). É possível fazer a autocrítica ao PT que tanto exigiram de Fernando Haddad durante a campanha eleitoral? Que autocrítica seria essa?
Embora tenha sido assessor do presidente Lula, e com muita honra, nunca me filiei a nenhum partido político. E escrevi dois livros de críticas aos governos do PT: A Mosca Azul – Reflexão sobre o Poder e Calendário do Poder, ambos editados pela Rocco. O PT precisa, sim, fazer autocrítica dos erros cometidos,
em especial no que diz respeito à ética. E retomar o trabalho de base, pois fora do povo não há salvação.
12. Qual o papel das religiões, dos líderes políticos, nesse momento do país, que se reflete nas famílias?
Depende de que líderes estamos falando. Dos que defendem os direitos humanos e abraçam os valores do Evangelho, o papel deles é incutir tais valores nos mais jovens e reforçar todos os movimentos sociais dispostos a construir um país mais justo e igualitário.
13. Como as famílias podem ou deveriam superar as agruras plantadas durante o processo eleitoral?
As famílias devem praticar a tolerância e não fazer da diferença, divergência. Uma eleição não merece o preço de uma verdadeira afeição.
14. Qual o papel dos homens e mulheres de fé na construção de um Ano Novo mais fraterno e de paz?
Cultivar a bem-aventurança da fome e da sede de justiça e se solidarizar com todos os movimentos que lutam por um Brasil e por um mundo mais livre e mais justo.
15. O que não é possível deixar para trás?
A frágil democracia que construímos desde o fim da Ditadura Militar, em 1985,
e a Constituição Cidadã aprovada em 1988.
16. O que é preciso deixar para trás?
Sentimentos de ódio, ira e vingança. O ódio é um veneno que você toma
esperando que o outro morra…

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