As lideranças estiveram em audiência na PGR e protocolaram documentos nos gabinetes dos ministros do STF, pedindo a declaração da inconstitucionalidade do marco temporal
Por Adi Spezzia – Comunicação do Cimi
Enquanto o céu de Brasília trocava de cor, ao final do dia, nesta quinta-feira (27), indígenas mobilizados no Levante Pela Terra se manifestaram na Praça dos Três Poderes. Cerca de 200 indígenas dos povos Kaingang, Xokleng, Guarani e Kaiowá, Guarani Nhandeva, Guarani Mbya, Huni Kuin e Tukano estão na capital federal nesta semana.
Com seus maracás, cartazes, cantos e danças reivindicam a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, a “Lei do Marco Temporal”, que limita as demarcações de terras indígenas às posses comprovadas em 5 de outubro de 1988, criando um marco temporal, quanto fixa outras normas que criam obstáculos para a demarcação de terras indígenas. Outra pauta elencada pelos indígenas é a retomada dos processos de demarcação em todo país.
Os indígenas pedem ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declare, de uma vez por todas, a inconstitucionalidade da lei para que os processos de demarcação possam ser retomados. “Nós estamos aqui pra enfrentar essa lei. Vamos mostrar que somos indígenas de resistência”, afirmou Simão Guarani Kaiowá, coordenador da Aty Guasu.
Além de inconstitucional, a lei – sancionada pelo Congresso Nacional durante o recesso legislativo, em 28 de dezembro de 2023 -, ignora a decisão dada pela Suprema Corte em setembro do mesmo ano no RE 1017365 (Tema 1031). Na ocasião, a Corte afastou a tese do marco temporal como critério para demarcação das terras indígenas. Mesmo assim, o Congresso promulgou a lei, em uma disputa de força com a Suprema Corte.
A Constituição de 88 assegura direitos fundamentais originários aos povos indígenas e o principal deles é o acesso às terras. “Vínhamos de muita luta contra o marco temporal e temos agora uma lei que está aí, atrapalhando”, reforça Nandja Xokleng. “Essa lei facilita a abertura dos territórios para a exploração de terceiros, para o agronegócio e a mineração entrar no território, para a exploração ilegal na pesca, na caça e madeira”, completa.
Enquanto a vigília acontecia do lado de fora do STF, um grupo de mulheres indígenas – representando o Levante Pela Terra – realizaram o protocolo de uma carta junto aos gabinetes dos ministros do Supremo. “Estamos aqui para denunciar as violências que aumentaram muito com a promulgação da Lei 14.701. Ainda viemos denunciar a paralisação dos processos de demarcação e pedir a suspensão dessa lei, já que é inconstitucional”, explica Nandja Xokleng.
Em um trecho da carta, os indígenas destacam: “Nossa missão é alertar ao STF a respeito da situação que vivemos em nossos territórios, pois não conseguimos mais aguardar o Estado, morrendo de fome, sede, frio e sem nenhuma condição digna de vida, em acampamentos improvisados, em pequenos pedaços de terras ou mesmo na margem das rodovias”.
Aos ministros do STF, os indígenas pedem que se suspenda a Lei 14.701/2023 de forma imediata, ao menos para garantir a proteção dos territórios, até que ela possa ser julgada inconstitucional pela Corte.
Na oportunidade, as mulheres do Levante Pela Terra foram recebidas pela chefe de gabinete do Presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, e pela Ouvidora do STF. As representantes indígenas relataram o sofrimento que vivenciam nos territórios, como os abusos, violências, assassinatos e as constantes tentativas do agronegócio em se apropriar de seus territórios. Falaram ainda da importância da Corte em se manifestar sobre a Lei 14.701, visto que quase seis meses se passaram e não houve sequer a suspensão da eficácia da Lei, que contraria tanto a Constituição Federal quanto a tese fixada pelo STF em setembro do ano passado.
“Falamos também das diversas ações judiciais contrárias à lei, que já se encontram em tramitação no Supremo desde dezembro do ano passado, sem apreciação das medidas de urgência, bem como do impacto drástico da Lei na vida dos povos indígenas no Brasil. Há ações diretas e incidentes de inconstitucionalidade, como o pedido do povo Xokleng no Recurso Extraordinário e na Ação 1100, que devem ser apreciados pela Corte com a prioridade máxima que a situação impõe”, explicou Paloma Gomes aos indígenas que estavam na vigília, em frente ao STF. Paloma é advogada de várias comunidades indígenas e assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e acompanhou as mulheres no STF.
Sobre as incidências junto à Corte, Nandja Xokleng falou sobre a esperança que os povos indígenas têm para com a casa: “a gente espera que daqui para frente eles [os ministros] recebam essa lei e apreciem essa lei no STF. E que rasguem essa lei assassina, que está nos matando, matando nossos territórios”.
Mais cedo, esse mesmo grupo de mulheres representando o Levante Pela Terra estiveram em audiência na 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), onde cobram que a Procuradoria-Geral da República (PRG) cumpra com o seu dever constitucional de defesa dos direitos indígenas e manifeste-se com urgência no RE 1017365 e na ADI 7582 pela inconstitucionalidade da Lei 14.701/23.
Durante a audiência, as indígenas sustentaram o fato de que a situação ainda não está resolvida. “Para nós indígenas ainda não está pacificado, nós estamos sofrendo um grande ataque contra nossos corpos, contra nossa história”, rebateu Nandja. “Minha vó, disse há muitos anos que não seríamos mais mortos com o fio do facão. Que agora seremos mortos é com as canetas”, completou.
Em abril deste ano, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, enviou um parecer ao Supremo Tribunal Federal (STF), na ACO 1100, [CA1] onde defende a derrubada do marco temporal das terras indígenas, que dá base à Lei 14.701. A PGR também deu parecer favorável para que a lei seja declarada inconstitucional na sua maior parte. O pedido feito pelo Levante Pela Terra é para que a PGR também se manifeste “RE 1017365 e na ADI 7582 pela inconstitucionalidade da Lei 14.701/23”, com urgência.
Em outra oportunidade, a subprocuradora-geral da República Eliana Torelly, coordenadora da 6ª Câmara, também havia se manifestado: “a nova lei trouxe inúmeros retrocessos aos povos originários”, argumentou em audiência com indígenas durante o ATL 2024. A norma trouxe muitos problemas aos indígenas, como a permissão para instalação de bases militares e empreendimentos dentro de terras indígenas sem ouvir esses povos, destacou a procuradora.
II Edição do Levante pela Terra
A II Edição do Levante pela Terra iniciou segunda-feira (24) e recebeu mais de 200 indígenas de diversos povos de todo o Brasil até esta sexta-feira (28). O acampamento foi instalado no Complexo Cultural Funarte, em Brasília (DF).
“Falar de Levante pela Terra, é colocar o território no centro da luta, no centro da discussão”, explicam os organizadores do acampamento.
Lideranças e organizações indígenas e indigenistas rememoram a primeira edição do evento, em 2021, destacando sua importância histórica para a derrubada da tese do marco temporal, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro do ano passado.
“Falar de Levante pela Terra, é colocar o território no centro da luta, no centro da discussão”
Para Simão Guarani Kaiowá, o Levante evidencia a luta indígena mesmo diante das inúmeras tentativas de retrocesso promovidas pelo Congresso Nacional. “Estamos aqui para defender o nosso direito e a nossa terra, por isso chamamos o acampamento de Levante Pela Terra”, explica a liderança da Aty Guasu.
Ao longo da semana, como parte da programação do Levante Pela Terra 2024, foram realizadas plenárias, atos e marchas em Brasília (DF). Ao final do evento, os indígenas deverão tornar público um manifesto, mas já adiantam que a mobilização continua.