“Lembraremos que em 1500 a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as Américas. (…) Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente em termos relativos (uma destruição da ordem de 90% ou mais), mas também absolutos, já que estamos falando de uma diminuição da população [nativa] estimada em 70 milhões de seres humanos. Nenhum dos grandes massacres do século XX pode comparar-se a esta hecatombe”.
As palavras do filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov, presentes em sua obra A conquista da América – a questão do outro, publicada pela primeira vez em 1983, são fundamentais para uma compreensão sobre a chegada de Cristóvão Colombo e das caravelas Santa Maria, Pinta e Niña em solo americano.
Os brasileiros Marcelo Grondin e Moema Viezzer também qualificam o início da presença europeia na América como “o maior genocídio da história da humanidade”, sendo esse o título que deram a um livro publicado em 2018.
Baseando-se em registros históricos, os autores afirmam que apenas na área que atualmente forma o México foram cerca de 20 milhões de assassinatos; quase 18 milhões no que hoje conhecemos como Estados Unidos; mais de dez milhões na região dos Andes; e aproximadamente quatro milhões no território brasileiro.
Exatos 528 anos depois do fato ocorrido em 12 de outubro de 1492, as Américas seguem como um terreno de extermínio de povos originários e comunidades tradicionais. Para Marli Aguiar, articuladora local da Rede Jubileu Sul Brasil, trata-se de um projeto de colônia “pensado para durar ao longo dos anos sobre os corpos negros e indígenas, sobre os corpos diferentes. E o genocídio ainda não terminou, continua”.
Dado o grau de racismo que persiste no Brasil, afirma Marli, se mantém essa diferença colonial “de achar que o negro é diferente, que índio não é gente, que não somos capazes e que não podemos assumir nenhum outro espaço que não seja de trabalhos precários, que não dignifica, que é o trabalho que a branquitude não quer fazer. É a ideia de colônia, de servir a Casa Grande, haja vista o trabalho doméstico, os trabalhos de limpeza, as diaristas”.
Durante a pandemia, ressalta a articuladora, foram estes os corpos obrigados a trabalhar para atender à classe média branca “que vive ainda sobre o conceito da colônia, esse projeto genocida de expansão da Europa, mas de expansão destruindo a cultura do outro, a vida, a religiosidade, o corpo do outro”.
Além do genocídio dos povos que já habitavam as Américas, a presença colonizadora foi marcada também pela exploração e saque de recursos naturais. No clássico As veias abertas da América Latina, Eduardo Galeano denunciou que, entre 1503 e 1660, desembarcaram no porto de Sevilha 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, o que segundo ele, foi fundamental para o desenvolvimento da Europa.
“A prata levada para a Espanha em pouco mais de um século e meio excedia três vezes o total das reservas europeias. E essas cifras não incluem o contrabando. Os metais arrebatados aos novos domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e até se pode dizer que o tornaram possível. Nem sequer os efeitos da conquista dos tesouros persas que Alexandre Magno derramou sobre o mundo helênico poderiam ser comparados com a magnitude dessa formidável contribuição da América para o progresso alheio”, escreveu o autor uruguaio.
Por isso, Marli completa que “hoje a Europa vive bem porque roubou e pilhou na África, nas Américas, na Ásia. Toda a riqueza europeia é à custa das populações negras, indígenas e o que eles denominaram países de terceiro mundo”.
Manter o pagamento da dívida pública é reafirmar a exploração
Uma das marcas dessa realidade de explorações se dá, por exemplo, na questão da dívida pública.
A respeito disso, organizações da sociedade civil que articulam a Semana de Ação Global Contra a Dívida e as Instituições Financeiras Internacionais (IFIs), iniciada no último dia 10 e em curso até o próximo dia 17 de outubro (confira a programação de atividades), assinalam que anualmente o Sul Global – com a América Latina e o Caribe responsáveis por parte expressiva – gasta mais de 300 bilhões de dólares para pagamentos da Dívida Pública a órgãos multilaterais e grandes empresas, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
Entendendo a questão da dívida pública como uma verdadeira estratégia de armadilha de dependência, um conjunto de entidades – dentre as quais a Rede Jubileu Sul Brasil – defendem a anulação do pagamento da dívida e a destinação desses recursos para o investimento em políticas públicas e sociais de reparação das dívidas históricas com as comunidades e grupos mais afetados.
“As condições políticas associadas aos empréstimos, incluindo cortes nos serviços públicos e proteção social, privatização e programas severos de austeridade, também causaram tanto, se não mais, danos do que o serviço da dívida, especialmente às mulheres e meninas, aos povos indígenas e aos indivíduos e comunidades mais empobrecidos e vulneráveis. Estas condições exacerbaram os conflitos sociais, a criminalização da pobreza, a militarização e a repressão”, denunciam as entidades, em documento público direcionado a governos e instituições financeiras.
Ricos cada vez mais ricos, pobres cada vez mais pobres
Territórios marcados por profundas desigualdades, que têm relação direta com os processos de colonização e escravização iniciados a partir da presença de Colombo e confirmados ao longo dos séculos, a América Latina e o Caribe veem, mesmo durante a pandemia, a exacerbação dos abismos sociais.
O recente estudo “Quem paga a conta? Taxar a riqueza para enfrentar a crise da Covid na América Latina e Caribe”, publicado pela Oxfam, é emblemático ao revelar que, entre março e junho deste ano, 73 bilionários dos países da região aumentaram as suas fortunas em mais de 48 bilhões de dólares, conforme o relatório. Apenas no Brasil, os 42 bilionários do país tiveram um crescimento das suas riquezas em 34 bilhões de dólares.
Se para alguns poucos as Américas seguem sendo um paraíso, assim como foi para Colombo, para a maioria da população, por outro lado, a realidade segue perversa. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a América Latina e o Caribe enfrentam uma crise econômica e social sem precedentes, que tem como um dos reflexos o recorde de 41 milhões de pessoas desempregadas.
Além disso, a OIT destaca que, das 292 milhões de pessoas empregadas na região, 54% estão na informalidade, em condições precárias e sofrendo perdas consideráveis nas suas rendas, provocando agravamento da pobreza e da fome em diversos países. Apenas no Brasil são, atualmente, 10,3 milhões de pessoas sem acesso regular à alimentação adequada, conforme apontado pelo IBGE.
Não bastasse serem as principais vítimas dessas opções históricas de séculos, os povos da América Latina e do Caribe têm ainda que resistir ao pensamento/prática que, ao modo colonizador de 1492, os veem como obstáculo. Exemplos brasileiros não faltam: o presidente da República que afirmou que quilombolas eram pesados em arrobas e que “não teria um centímetro de terra demarcado para reserva indígena ou quilombola”; o ex-ministro da educação que disse odiar povos indígenas; o presidente da Fundação Palmares que declarou que “a escravidão foi benéfica para os descendentes”.
Todos esses fatos não deixam dúvidas que, mais de cinco séculos depois da chegada das naus europeias à ilha de Guanahani, as Américas seguem com o desafio de não precisar de “ridículos tiranos” que exercem “seus podres poderes”, como nos lembra Caetano Veloso.