Por Júlia Dias Carneiro, da BBC Brasil
Foto da Agência Brasil
Era 14 de julho de 2013, e o ajudante de pedreiro saíra para comprar limão e alho para temperar os peixes que havia pescado para a família, quando foi detido por policiais e levado para interrogação na Unidade de Polícia Pacificadora no alto da Rocinha, favela em São Conrado, na zona sul da cidade.
Nos dias, semanas e meses seguintes, Elizabete protagonizou o questionamento retumbante que ecoou Brasil afora: “Onde está o Amarildo?”
Ocorrido pouco depois dos protestos de junho de 2013, o desaparecimento de Amarildo motivou manifestações, campanhas de entidades de defesa de direitos humanos e virou um símbolo de violência policial e da derrocada das UPPs, chamuscando a imagem até então majoritariamente positiva das Unidades de Polícia Pacificadora implantadas nas favelas do Rio.
De lá para cá, a família viu as investigações trazerem resultados aterradores, confirmados pela sentença proferida pela Justiça em fevereiro de 2016. Doze dos 25 policiais militares denunciados na UPP da Rocinha foram condenados pelos crimes de tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual.
Três anos após sua morte, o governo do Estado do Rio foi condenado a indenizar sua família em R$ 3,5 milhões – R$ 500 mil para cada um de seus seis filhos e para sua companheira – e mais uma pensão de um salário mínimo por mês para Elizabete.
Cinco anos após sua morte, porém, a família continua lutando na Justiça para receber a indenização. O Estado está recorrendo contra a determinação judicial. O corpo de Amarildo até hoje não foi encontrado.
“Eu espero que eles paguem pelo que eles fizeram. Que a gente pelo menos receba indenização do Estado. Porque foi o Estado que errou”, diz Elizabete em entrevista à BBC News Brasil. De acordo com a sentença, após ter sido levado para questionamento na UPP, Amarildo foi torturado com descargas elétricas, saco plástico na cabeça e afogamento em balde com água, o que teria sido a causa de sua morte.
“O que aconteceu com o Amarildo foi uma coisa muito bárbara. Meu marido morrer assim, tendo família e tendo filhos, e ninguém saber o que aconteceu”, diz Elizabete. “Não era um animal, era um ser humano. Pai de família. O Amarildo não era envolvido (no crime). Ele era trabalhador, nascido e criado na Rocinha. Todo mundo conhecia o Amarildo.”
‘Coluna da casa‘
Elizabete e Amarildo estavam juntos havia 27 anos e tiveram seis filhos. Atualmente com idades de 11 a 26 anos, todos seguem morando com a mãe na Rocinha. Após a morte do pedreiro, compraram uma nova casa na parte mais alta da comunidade graças ao dinheiro arrecadado por um grupo de artistas, liderados por Caetano Veloso e Paula Lavigne, com a venda de obras de arte para ajudar a família a se reestruturar.
“Ele era a coluna da casa, o pai dos meus filhos. Quando acontece um fato desses, você fica com as mãos atadas”, diz Elizabete. “Eu quero que a Justiça seja feita, mas sinto que é muito demorado. Estamos há todo esse tempo esperando e não vemos resposta. Estamos na expectativa de receber nossos direitos para tocar a nossa vida.”
Sobrinha de Amarildo, Michelle Lacerda, de 31 anos, diz que a morte de seu tio e suas circunstâncias escabrosas – sob tortura de agentes do Estado – deixou a família “destruída”. Eles continuam unidos, “como sempre foram”, diz. Mas os impactos são duradouros e continuam a se manifestar de diferentes formas.
No início, os filhos tiveram um período de “revolta gigantesca”, gradualmente apaziguada com atendimento psicológico. Elizabete teve crises da dependência química por álcool e drogas.
Em outubro do ano passado, o filho mais novo dentre os rapazes, Amarildo Gomes da Silva, foi preso por PMs com uma pistola encontrada dentro de casa. A família diz que policiais “plantaram” a arma dentro da casa e agrediram o rapaz até que ele confirmasse que era dele. Ele foi autuado por posse ilegal de arma de fogo de uso restrito e por associação ao tráfico.
“Para parar de apanhar, ele falou que a pistola era dele, com medo de ser torturado. Compreensível, depois de ter a família destruída por tortura”, diz Michelle. Ele foi solto em fevereiro deste ano por falta de provas que justificassem sua permanência na cadeia.
E a caçula da família, Milena, de 11 anos, tem precisado de tratamento psicológico e psiquiátrico.Após a morte do pai, começou a ficar assustada com comentários de policiais que ficavam estacionados na saída de sua escola, e comentavam sobre ser aquela “a filha do Amarildo“, conta Michelle.
“Ela começou a desenvolver uma síndrome do pânico. Para evitar esse transtorno, mudamos ela de escola”, diz a sobrinha de Amarildo. “Ela não dorme a noite inteira, e quando escuta fogos, ou os tiros que temos tido direto na Rocinha, vive momentos de terror. Fica repetindo que a polícia vai vir, vai pegar um de seus irmãos, vai fazer o mesmo que fez com o seu pai.”
Segundo Michelle, a família ficou estigmatizada depois do que aconteceu, e a sociedade apressa-se em julgá-los sem conhecer seus reais problemas – falando da indenização que nunca saiu como se fosse uma regalia, por exemplo.
“As pessoas estão achando que a gente está milionário porque o Estado foi condenado a pagar R$ 3,5 milhões. Perguntam por que a gente ainda está na Rocinha depois de ganhar esse dinheiro”, exemplifica Michelle. “Só que esse dinheiro não é real. O que é real são todos esses problemas que a gente continua sofrendo e a preocupação que temos diariamente tendo que acompanhar de muito perto a situação de cada um. A gente preferia não estar pedindo indenização nenhuma. A gente queria ter o meu tio aqui, vivo.”
‘O chão abriu e Amarildo sumiu’
Do Estado, Elizabete recebe um salário mínimo por mês por antecipação de tutela, uma espécie de adiantamento da indenização paga por determinação judicial enquanto transcorre a ação na Justiça. É o que tem para sustentar a casa e os filhos, além da ajuda que recebe dos filhos mais velhos. Aos 26 anos, o primogênito, Anderson Gomes Dias de Souza, trabalha como mototaxista na Rocinha.
Ele chegou a investir na carreira de modelo após a morte do pai, mas o dinheiro não estava entrando. No mototáxi, o dinheiro é pouco, mas mais garantido.”Eu tenho que ajudar dentro de casa, então tive que escolher uma coisa ou outra. Escolhi levar o pão de cada dia para casa, ajudar a minha mãe e meus irmãos pequenos”, afirma Anderson.
“Agora eu praticamente sou o homem da casa, né?”, diz.
Elizabete diz que a caçula, Milena, até hoje pergunta pelo paradeiro do pai. Entende que ele morreu, mas pergunta pelo seu corpo. “Ela fala: ‘Mãe, será que vão achar o meu pai? Eu queria tanto enterrar o meu pai.” E eu digo que já se passaram cinco anos. ‘Não existe mais não, filha.'”
“Seria importante demais para a gente enterrar os restos mortais do Amarildo. Mas a gente não pôde realizar esse sonho”, diz Elizabete. “Se mataram, podiam pelo menos mostrar o corpo. Mas sumiram com ele. Como uma coisa, tipo assim, o chão abriu e o Amarildo sumiu ali dentro.”
Para a viúva, quem sabe onde está Amarildo “é quem fez a tortura com ele e sumiu com o corpo dele”. Ela diz já não ter esperança de que seu destino seja revelado.
Indenização contestada
Advogado Rodolfo Ferreira, da equipe do escritório João Tancredo, responsável pela ação civil apresentada pela família de Amarildo contra o Estado, diz ter a expectativa de que a próxima fase de recursos de apelação das partes venha a ser julgada ainda neste mês pelo Tribunal de Justiça do Rio.
Ele frisa, entretanto, que esta é só mais uma etapa de um processo que ainda pode durar anos, potencialmente enfrentando recursos que cheguem ao STJ e ao STF. “Ainda há um longo caminho pela frente enquanto o Estado mantiver essa postura de perpetuar os danos que a família sofre”, diz Ferreira.
O advogado diz lamentar a conduta do Estado de negar o ocorrido “diante de todas as provas do crime praticado pelos seus agentes”, e diz que a família talvez precise esperar cerca de cinco anos até iniciar a fase de cumprimento de sentença, um trâmite que por sua vez também pode ser demorado.
“É claro que a indenização não vai acabar com o sofrimento. Mas ela fecha um ciclo de dor que continua latente enquanto a família não vê uma satisfação. Nesse caso, isso é ainda mais sério, porque não foram permitidos sequer os rituais de despedida, com o enterro do corpo”, afirma Ferreira. Consultada, a Procuradoria Geral do Estado enviou à BBC News Brasil a apelação com os argumentos apresentados pelo Estado no recurso contra a indenização.
A PGE contesta os valores estipulados a título de danos morais. “Não se questionam a dor e o sofrimento experimentados pelos autores quando do desaparecimento de Amarildo“, afirma, mas a quantificação da indenização pedida fugiria “aos parâmetros de proporcionalidade e razoabilidade.”
Além disso, a PGE questiona a ausência de comprovação de que Elizabete “convivia como companheira de Amarildo à época dos fatos”, argumentando que não basta a existência de “filhos em comum” para comprovar a união estável. Contesta, ademais, os pedidos de pensão mensal devido à “absoluta inexistência de prova quanto ao exercício de atividade laborativa por Amarildo à época dos fatos”.
Outros Amarildos
Nos meses após o desaparecimento de Amarildo, a família chegou a procurar clínicas de reabilitação para dependentes químicos para internar Elizabete, que voltara a beber e a usar drogas como maconha e cocaína.
Hoje, Elizabete parece serena e bronzeada, com um ar saudável depois de passar seis meses com a família no interior do Pará e em Natal, de onde saiu 35 anos atrás para se mudar para o Rio.
“Era muita pressão em cima de mim sozinha. Eu acordava com jornalistas na minha porta, corre para lá, corre para cá. Precisei sair um pouco para espairecer um pouco a mente”, conta. “Deu uma paz. Porque na Rocinha você convive com aquela bagunça diariamente, né? Sobe morro, desce morro, é tiro pra lá, bomba para cá.”
No Rio, Elizabete é reconhecida em toda parte como “a mulher do Amarildo”. No Nordeste, pôde desfrutar de um período de anonimato, sem ser abordada por estranhos querendo saber o que aconteceu, como aconteceu. “Fica aquela lembrança, o dia todo.”
Mas a visibilidade que o caso ganhou e o protagonismo que ela assumiu lhe trazem preocupação. “Com tudo que aconteceu, eu tinha mesmo que botar a cara. Tinha que gritar que meu marido sumiu, questionar quem, como, o que aconteceu. Muita gente não faz isso por medo”, diz.
“Mas desde a morte do Amarildo, a gente não tem muita segurança. Eu tenho medo de… A gente acha que nunca vai acontecer com a gente, né? Mas pode acontecer”, diz Elisabete. “Eu tenho medo de algo acontecer com meus filhos, comigo, com a família dele. Entendeu? Porque a gente ficou muito visado.”
Apesar toda a repercussão que a morte do Amarildo teve, ela não considera que o Rio, ou o Brasil, tenham aprendido qualquer lição. “É só você ver quantos outros Amarildos têm por aí desaparecidos.”