Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil
Segundo o filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe, a branquitude e sua ideia de poder se alicerçam como centro da humanidade no hemisfério ocidental, deixando os não brancos como se estivessem fora dessa humanidade, num modelo de sociedade que parte de uma visão eurocêntrica e ao longo de séculos.
Partindo desta apresentação, Marli Aguiar, mulher negra e articuladora local do Jubileu Sul Brasil, deu início à roda de conversa “O Papel da Branquitude na manutenção da colonização e nas lutas antirracistas”, realizada em 30 de junho.
Às dezenas de participantes da roda virtual, Marli pontuou as muitas formas de legitimação cotidiana da branquitude – a oposição entre brancos e os “outros” não brancos, os negros, indígenas, asiáticos -, que se estabelece pelas estruturas da educação, da ciência, jurídicas e em outras esferas sociais, e considerando estes “outros” como inferiores, como incapazes.
“Discutir o racismo pelo viés da branquitude nos faz pensar a pessoa branca como uma raça, e que ela possa olhar para si mesma e identificar privilégios, questionar sua existência e seu papel como humanidade em uma sociedade que sempre viveu no sistema de colonização, escravização do que sempre chama de ‘outros’ como negros, indígenas”, afirma a articuladora, defendendo que é fundamental ao Jubileu Sul e às suas organizações encarar o debate e a luta antirracista.
Marli recordou a naturalização da branquitude perpetrada no Brasil pelo sociólogo Gilberto Freyre em “Casa-grande & Senzala” com a falácia da “harmonia” entre colonizadores, indígenas e negros na história do Brasil “relativizando todas as violências sofridas, como estupros, torturas, assassinatos para além da própria escravidão”, critica.
Por isso o debate desafia a todos a perceber o racismo que prossegue no Brasil desde o período colonial e mantido por políticas “porque pouco se fez e o branco ocupa, em detrimento ao negro e aos indígenas, os melhores postos de trabalho, melhores escolas, acessos a espaços diversos, ao saneamento básico, à moradia, à cidade em que muitos negros e negras e população indígena não tiveram ou não podem ter até hoje”.
Lugar de privilégios e ações de mudança
A articuladora reforça que é preciso questionar as ações que se desenvolvem, pois têm impacto “para manter o sistema de privilégios para alguns, ou de mudança radical deste sistema mudança para todos”. Ela ressalta que mudar significa ação, significa distribuir, repensar sobre posição dentro de uma sociedade em que vivemos de forma desigual.
O não reconhecimento do racismo no país, e as desigualdades atreladas a problemas sociais que desconsideram as questões raciais, também fazem parte de uma supremacia branca, impedindo a discussão de privilégios, ações de mudança e relativizando a violência.
Independentemente de orientações políticas, Marli ressaltou que sempre há a manutenção das estruturas colonizadoras, do racismo e do beneficiamento dos brancos, mesmo quando se fala “questão identitária” para tratar do racismo nos movimentos progressistas, pois abordar a questão indígena, do machismo e do racismo são sempre temas transversais.
“Todo mundo fala, mas ninguém faz nada a não ser quem está envolvido concretamente, então é uma coisa que temos que refletir. “Quem está ganhando com isso? E por que isso ainda é assim?”, questiona a articuladora, que chamou atenção para a atitude defensiva daqueles que afirmam “não sou racista’.
Secretaria executiva da Rede Jubileu Sul Brasil, Rosilene Wansetto afirma que provocar o debate visa buscar a percepção da branquitude dentro das organizações da Rede, relevante para mudança de atitudes e práticas. “Se não discutirmos internamente, não vamos conseguir levar essa luta para fora, na sociedade. Foi importante para discutir lugar de privilégio nas nossas organizações, pensar nos conceitos da branquitude e da manutenção desses privilégios numa sociedade onde raça, classe e patriarcado são bases do capitalismo”.
Para Francisco Vladimir Lima, articulador do Cone Sul do Jubileu Sul Américas, é papel dos brancos questionar e pensar o que significa pertencer ao grupo de privilegiados, num esforço que exige “debate, reflexão, humildade e justiça. Parece duro, não é? Mas é com dureza que o povo negro tem enfrentado o racismo. É com dureza que os pobres, mulheres e homens, as juventudes negras das periferias enfrentam continuamente a exclusão, o preconceito”.
Na visão do articulador, as pessoas brancas que integram os movimentos sociais, organizações populares, igrejas e partidos têm que refletir sobre os próprios privilégios e também sobre “que tipo de discriminação racial tem se repetido entre nós”.
Assessor jurídico da Cáritas Brasileira, Igor Ferrer avalia que é importante a mobilização e o engajamento nas lutas antirracistas, mas “sem tomar para si o protagonismo. Deve entender qual o seu espaço para que utilize deste seu lugar de séculos de privilégio, ao menos agora, para dar mais voz e fortalecer estas batalhas”.
E finalmente nos chama a atenção Marli ao questionar, “não estamos discutindo se você é racista ou não, mas o que você faz para mudar o racismo concretamente? Qual a ação que você faz, seja coletiva ou individualmente, para mudar essa situação de racismo que existe no nosso país?”, conclui.