Chico de Filippo, André Lima e Luis Fernando Novoa*
No dia 15 de janeiro foi publicado um artigo no Brasil de Fato intitulado: “Por que a dívida pública é importante e boa para um Estado?”, de Juliane Furno, no qual, dentre outras, Furno argumenta porque a dívida pública é boa para o Estado. A autora chega a chamar os críticos da dívida pública de economistas de direita e liberais. Segundo ela: “o Estado brasileiro – ao se endividar – faz isso na nossa própria moeda e com uma taxa de juros que ele mesmo define”. Seria tão simples assim? O Brasil de Fato publicou este artigo em versão editada, que pode ser lida aqui. No site do Jubileu publicamos, agora, a versão na íntegra, no sentido de contribuir para este debate.
Orçamento e dívida pública são temas polêmicos e podem ser também muito complexos, pois estão permeados por inúmeras variáveis que os determina. Toda a Ciência Econômica é assim, por isso mesmo ela nunca será uma ciência exata, mas uma ciência social. Neste sentido, realizar demasiadas simplificações com o objetivo de didatismo é sempre arriscado e pode levar a um resultado inverso do esperado. Este texto tem como objetivo dialogar com o artigo citado no sentido de questionar certos parâmetros tidos como verdade e apontar outros temas ausentes no texto mas que influenciam diretamente no debate da dívida pública.
O primeiro questionamento é o mais básico, pois, sabe-se, a dívida não é só fruto exclusivo das políticas fiscais de um estado. Ela também é fruto das diretrizes políticas monetária, tributária, cambial e da própria política do governo como um todo. Por exemplo, no início do Plano Real, o crescimento da dívida ocorreu em virtude das operações de mercado para garantir o Real valorizado e, assim, além de diminuir a taxa de inflação, incentivar as privatização e desindustrializar o país. Por outro lado, a autora tem razão ao sugerir que a dívida pública pode ser um instrumento de aumento da demanda e de socorro às finanças públicas, sobretudo em momentos de crise econômica como o que estamos vivendo.
Porém, o exemplo do cidadão ou cidadã, que compra títulos da dívida como quem empresta dinheiro ao Estado para obter renda na forma de juros não é dos melhores, porque encobre uma questão fundamental: quem são os reais credores da dívida pública brasileira? Em artigo publicado no Brasil de Fato, intitulado: “Quem são os proprietários da dívida pública brasileira”, Gustavo Pedro e João Pinto, demonstram quem realmente se beneficia dos juros oriundos dos títulos da dívida pública. Eles partem da constatação que, periodicamente, o Banco Central divulga uma lista de instituições financeiras habilitadas a negociar títulos da dívida pública.
De acordo com o artigo, entre 2011 e 2014 o mesmo Banco Central divulgou os “top five”, os cinco maiores negociadores de títulos da dívida pública a cada ano, o resultado foi que 9 bancos se revezaram entre os cinco principais credores, são eles: o Bradesco, o Santander (Espanhol), a Caixa Econômica Federal, o HSBC (Holanda), Goldman Sachs (EUA), Itaú, Unibanco e Citibank. De acordo com os autores: “É importante frisar que esse processo não passa por nenhum tipo de licitação e é bem restritivo, tendo como critérios o volume de capital social da instituição, um suposto “padrão ético de conduta” e avaliações de desempenho em leilões anteriores – o risco de formação de cartel por tais instituições nos leilões de títulos é evidente.”
Dizer meramente que a dívida pública é boa para a economia acaba por ocultar quem de fato se beneficia do seu mecanismo. Além disso, ao afirmar que o Estado determina a taxa de juros sobre os títulos que ele mesmo emite, títulos esses que são comprados, sim, por pessoas, mas também e, sobretudo, por empresas, a autora desconsidera a influência que o capital financeiro exerce sobre as instâncias de decisão da taxa de juros em particular e da política econômica como um todo. Ou acreditamos que o Ministério do Planejamento, o Ministério da Fazenda, o Banco Central ou o COPOM são instituições-instâncias eminentemente técnicas? Que a definição da taxa de juros é baseada em critérios técnicos? O que explica os lucros exorbitantes dos bancos em pleno período de crise econômica? Além disso, cerca de 40% da renda dos bancos vêm de aplicações em títulos da dívida pública. São as instituições financeiras, em sua maioria, privadas, as principais negociadoras e detentoras do estoque da dívida pública interna.
O pagamento dos serviços da dívida pública (juros), que cresce principalmente em períodos de crise, concorre sim diretamente com os gastos públicos em programas sociais e isso também precisa ser levado em consideração. Além disso, uma situação em que o governo seja obrigado a vender títulos da dívida para o pagamento de pessoal não é nada desejável. Mais que isso, o endividamento público é o caminho mais curto, porém, não é o único instrumento para se atacar um problema de déficit nas finanças públicas. Há outros instrumentos, a exemplo da taxação de grandes fortunas e da auditoria da dívida pública, para citar apenas dois.
Dívida e orçamento
Uma grande ingenuidade trazida no texto da autora é acreditar que apesar do montante pago com juros, todo o resto do orçamento é elaborado sem o efeito da dívida pública. As finanças organizam o capitalismo mundial a partir da década de 1980 de forma hierárquica, tendo por centro o dólar e Wall Street, conferindo aos EUA privilégio ainda maior que aquele atingido na ordem do pós-guerra (Bretton Woods). No Brasil, o domínio do capital financeiro passa pela manutenção do tripé de metas de inflação, liberalização cambial e superávit primário. Estes três, tratados como verdades absolutas que não podem ser questionadas nem em períodos eleitorais, são as bases econômica do constante processo do acúmulo de lucro do mercado financeiro, fazendo-o como o setor que mais cresce na economia brasileira desde o início do governo Fernando Henrique Cardoso.
Se o tripé é a base da política econômica financista, cabe à gestão da dívida pública garantir a taxa de retorno do mercado financeiro. Para isto, a dívida tem, dentre outras, função de limitar o uso do orçamento público para fins de gestão das políticas públicas e ser o principal parâmetro da montagem do orçamento brasileiro. Em outras palavras, o orçamento é feito primeiramente para pagar juros e estruturar a rolagem da dívida. Tal política, como é vista hoje, tem início junto ao plano Real. Todavia, é a partir do segundo governo FHC, com o estabelecimento do regime de metas de inflação que surgem alguns dos elementos balizadores desta política:
A Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar 101/2000) é a primeira normativa que consolida a primazia do pagamento dos juros da dívida sobre as demais despesas da União (Parágrafo 1 do Artigo 5º). É em torno desta prioridade que toda a peça orçamentária é montada e, a partir, também é estipulado, a cada bimestre (Artigo 9º), o volume do orçamento contingenciado, ou seja, o montante inicialmente previsto para as outras áreas que não poderão ser utilizados. Na prática, a Lei de Responsabilidade Fiscal faz com que os Governos segurem os gastos em todo o primeiro semestre, descontinuando projetos, remontando equipes e parâmetros, para no segundo semestre, sabendo do que é possível no ano, “correr” para executar o mais rápido possível.
Outra normativa fundamental é a Desvinculação das Receitas da União (DRU). Este instrumento permite que até 30% das receitas vinculadas a gastos sociais e investimentos poderiam ser destinadas ao abatimento da dívida. Assim, garante recursos que efetivamente possam ser destinados ao pagamento dos juros, por meio da geração dos Superávits Primários, que, conforme a LRF estabelece o montante de recursos que devem ser destinados ao pagamento da dívida. Desde 1994 até o ano de 2014 foram quase 20 anos seguidos com mais de 10% do orçamento destinados para o pagamento de juros. Mesmo assim, devido à gestão da política econômica, a dívida brasileira continuou a crescer. Fica evidente que o problema do crescimento da dívida não é com o “excesso de gasto” do Estado, mas com a política econômica voltada à gestão da dívida.
Todavia, não satisfeito em consumir fatias importantes do orçamento e travar toda a gestão fiscal nas outras áreas, novas políticas vão sendo criadas sempre em favor de garantir que a gestão orçamentária priorize a gestão e o gasto com a Dívida Pública, como a Lei que permite o uso dos restos a pagar e do lucro com operações das reservas cambiais no abatimento da dívida (Lei 11.943 de 2009 e Lei 11.803 de 2008) ou mesmo a Lei 9.496/97 que securitiza a dívida dos Estados e Municípios mas estabelece uma taxa de juros que é sempre maior que a taxa de crescimento das receitas estaduais, levando os Estados à falência atual. Falência que permite pressões por retiradas de direito. Vejam, não é só uma questão de juros.
Não bastassem todas restrições citadas acima, o mercado ainda exigiu ainda a constituição do “Teto do Gasto”. A Constituição de 1988 deixa evidente que o orçamento brasileiro deveria servir para garantir os direitos fundamentais do povo. A partir da implementação da EC 95/2016, o sentido do orçamento e das finanças no Brasil passa a ser primeiro o de garantir a gestão da dívida em favor dos interesses do mercado financeiro. Aos poucos já estamos sentido o impacto desta nova disposição constitucional que, sem reduzir o peso da dívida pública, destruiu um conjunto de políticas sociais e agora nos ameaçam com a Reforma da Previdência em nome da “estabilidade fiscal” do país.
A conclusão disso tudo é que mesmo que chegue ao Planalto Central uma gestão comprometida com os interesses da maioria do povo brasileiro, tal gestão não exercerá a política econômica sob condições outras senão as colocadas resumidamente neste artigo.
A importância da Auditoria da Dívida
Por fim, gostaríamos de, resumidamente, apontar 5 questões:
1 – A Gestão da Dívida Pública consome a gestão orçamentária do Governo Federal e dos Governos Subnacionais. De fato, esta dinâmica não tem como ser expressa num simples gráfico orçamentário, não porque os gastos com juros e refinanciamento possam estar superestimados, mas porque a dinâmica é constante e causa pressões “técnicas” pelo corte nos gastos com políticas sociais, por privatização de serviços e retirada de direitos;
2 – Ao longo dos anos surgiram inovações legais que engessaram progressivamente o orçamento estatal com a dinâmica da dívida, inviabilizando as demais políticas;
3 – Mexer neste processo é afetar toda a política econômica liberal. Portanto é algo não aceitável pelos governos que “seguem o mercado”. Promover qualquer mudança na lógica orçamentária implica, portanto, em ter que alterar toda a política econômica. Todavia, muitas destas mudanças já estão “impedidas” por lei, em especial a LRF e agora a EC 95;
4 – Assim, para dar sustentação à irresponsabilidade da política econômica levada à cabo pelos Governo Brasileiro desde meados dos anos 1990 (quando o atual modelo foi implantado), bem como para provar irregularidades contratuais da gestão da dívida no período anterior, a Auditoria da Dívida, prevista na Constituição Brasileira é um instrumento que pode se mostrar bastante eficaz;
5 – Com base numa auditoria, que deve realmente ser mais ampla e questionar o sentido de toda a política econômica e seus resultados concretos, um governo progressista e destinado a enfrentar o poder político, econômico e legal do capital financeiro, poderá armar-se de propostas concretas e legitimadas pela Constituição Federal do Brasil.
*Chico de Filippo é economista e membro da rede Jubileu Sul Brasil
* André Lima é economista e membro da rede Jubileu Sul Brasil
*Luis Fernando Novoa é sociólogo e membro da rede Jubileu Sul Brasil.