Protagonismo político do povo é condição básica para transformações 

O articulista Paulo Maldos. Foto: Divulgação/CFP

Por Paulo Maldos*

O Plebiscito Nacional sobre a Dívida Externa, realizado na semana de 7 de setembro de 2000, no contexto do Grito dos Excluídos, foi um evento com forte participação popular, organizado pela Rede Jubileu Sul Brasil e um conjunto de entidades, igrejas e movimentos populares. Na sua preparação, a Rede viabilizou o debate em todo o país acerca da dívida externa, das suas raízes e das suas consequências em termos das políticas públicas, da infraestrutura do Estado e da própria soberania nacional. Esta consulta à população, convocada, organizada e realizada de forma autônoma pela própria sociedade civil, foi uma iniciativa inédita na nossa história.

O Plebiscito Nacional da Dívida Externa teve a participação de mais de 6 milhões de votantes, em que 92% votaram contra o pagamento da dívida. Este evento foi precedido pela grande mobilização indígena em Porto Seguro (BA), em abril do mesmo ano, manifestação crítica às comemorações dos 500 anos da invasão portuguesa, e que sensibilizou a sociedade brasileira com relação às desigualdades, à violência contra os povos indígenas, ao racismo e à exclusão social.

O Plebiscito Nacional da Dívida Externa deu visibilidade aos mecanismos que reproduzem e agravam nossa estrutura social injusta; revelou a perversidade nas práticas de juros; mostrou como a dívida externa já havia sido paga muitas vezes e que, nos termos em que era colocada, não seria nunca superada.

A Rede Jubileu Sul Brasil se manteve como um fórum permanente de diversas forças populares do país, onde foi gestada a Campanha Nacional Contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e foi planejado, para o ano de 2002, o Plebiscito Nacional Sobre a ALCA. A preparação deste novo plebiscito iniciou em 2001 e teve participação no I Encontro Hemisférico de Luta Contra a ALCA, realizado em Havana, Cuba, para onde a delegação brasileira levou a proposta de plebiscitos e foi aprovada. Neste encontro, promovido em novembro de 2001 pela Aliança Social Continental (ASC), foi possível ter uma noção mais nítida da ameaça que significava a proposta norte-americana da ALCA para todos os povos latino-americanos. O Encontro Hemisférico de Havana decidiu pela criação da Campanha Continental Contra a ALCA, que foi lançada no II Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em janeiro de 2002.

A articulação deste plebiscito foi mais ampla do que a anterior e cresceu no seu enraizamento nos territórios, em todas regiões do país. A edição de duas cartilhas nacionais contribuiu muito para criar um patamar básico do que se entendia como proposta da ALCA, suas intenções e riscos, e a dimensão que adquiriu a distribuição deste material pedagógico tornou esse tema fortemente popular. A primeira edição da cartilha, com 100 mil exemplares, logo esgotou, tendo que ser reimpressa várias vezes até chegar em 430 mil exemplares, tal era a demanda por material de estudo e debate nas organizações populares. Importante notar que a partir das cartilhas foram produzidos materiais específicos para analfabetos, vídeos, programas de rádio, artigos e análises para jornais, peças de teatro, poemas e literatura de cordel.

Quanto mais se estudava e debatia o tema, mais crescia o interesse dos setores populares e mais militantes se envolviam na causa do plebiscito. O debate entre as entidades promotoras acerca das perguntas que constariam da cédula de votação foi intenso, profundo e com muita reflexão política. Por fim, foram aprovadas na coordenação nacional as três perguntas: sobre a assinatura do tratado ALCA; sobre participação nas negociações da ALCA e sobre a entrega da Base de Alcântara.

Na medida em que crescia o interesse sobre o tema ALCA e avançava o processo de organização do plebiscito, as agências de cooperação internacional europeias resolveram organizar um evento em Bruxelas, Bélgica, na sede do Parlamento Europeu, para que uma delegação brasileira pudesse explicar e debater sobre as ameaças que essa proposta norte-americana significava para os nossos povos.

A preparação para a realização do Plebiscito Nacional Sobre a ALCA, em 2002, ocorreu enquanto corria a campanha eleitoral para presidente do país, inclusive com o crescimento da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores. Essa preparação, com os temas e conteúdos que abordava, passou a incomodar a direção da campanha eleitoral do PT, ao ponto desta solicitar uma reunião com a coordenação do plebiscito. Nessa reunião, os representantes da campanha de Lula revelaram desagrado com algumas abordagens e debates que, segundo eles, poderiam prejudicar a disputa eleitoral. Entre os temas estava a crítica ao capitalismo, vista como “programa máximo” por eles e inapropriada para o momento de campanha eleitoral; estava a questão do imperialismo, concretizada na possível entrega do território de Alcântara para os Estados Unidos e estava na questão da dívida externa, vista como proposta de “quebra de contratos” e que poderia desestabilizar o debate eleitoral e inviabilizar a confiança dos mercados.

Ou seja, segundo os interlocutores da campanha eleitoral do PT, todos os temas do Plebiscito da ALCA desagradavam a sua coordenação política. A reunião não chegou a nenhuma conclusão, apenas na aceitação da participação de um representante do setorial de movimentos populares do PT na coordenação do plebiscito.

A realização do Plebiscito Nacional Sobre a ALCA, durante a semana de 7 de setembro de 2002, no contexto do Grito dos Excluídos, exigiu organização e articulação entre as entidades coordenadoras desse processo. A realização do plebiscito nos municípios contou com a mobilização de mais de 150 mil militantes das diversas organizações populares e um grande esforço para organizar os locais e horários de votação, com cédulas padronizadas, fiscalização, elaboração de atas de votação, segurança e lacre das urnas. Da mesma maneira, a apuração dos votos exigiu capacidade de mobilização de pessoas para a contagem das cédulas e organização dos resultados.

Ao final, tivemos o histórico resultado da participação de mais de 10 milhões de votantes em todo o país, com um altíssimo nível de rejeição, sempre por mais de 90% dos votantes, da assinatura do tratado da ALCA, da permanência do país nas negociações da ALCA e da entrega do território de Alcântara para os Estados Unidos.

Luiz Inácio Lula da Silva venceu as eleições em novembro de 2002, tornando-se presidente do Brasil. Nos anos seguintes, o Congresso Nacional não aprovou o acordo feito pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que entregava o território de Alcântara para os norte-americanos, e o presidente eleito não deu continuidade às negociações para a criação da Área de Livre Comércio das Américas. Representantes da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados afirmaram que o Plebiscito da ALCA foi fundamental para o cancelamento do acordo sobre a Base de Alcântara e representantes do Itamaraty afirmaram que o plebiscito foi fundamental para o fim das negociações sobre a criação desta área de livre comércio.

Aprendizado, força e desafios atuais

Os Plebiscitos da ALCA e Dívida Externa, que agora faz 20 anos da sua primeira realização, vistos em perspectiva do tempo e da história vivida em nosso país, nos remetem a diversos aprendizados e a diferentes desafios.

Um primeiro aprendizado é a respeito do enraizamento da ação política nos territórios e comunidades, na medida em que conseguimos nos comunicar com a linguagem dessas comunidades e estabelecer uma ligação clara entre os objetivos mais amplos da luta e seus interesses concretos, imediatos e cotidianos.

Um segundo aprendizado é da descentralização na organização da luta a nível local e regional, estimulando a participação e o protagonismo das organizações locais e regionais para definirem suas próprias formas organizativas e as atividades formativas e de mobilização popular, comprometendo e responsabilizando os/as militantes na implementação de todos os passos da luta.

Um terceiro aprendizado é da identificação profunda e massiva das bases populares com a causa, sua legitimidade e a viabilidade da vitória. Para tanto, é fundamental uma comunicação e um processo pedagógico nos quais temas altamente complexos, como são a questão da dívida externa e a criação de uma área de livre comércio, sejam tratados de maneira acessível pela população. Uma causa e um tema nunca são, em si mesmos, “populares”, mas podem ser “popularizados”, se bem divulgados e debatidos com as comunidades.

Um quarto aprendizado é da unidade, com articulação e diálogo entre diferentes forças sociais e políticas, baseada no respeito e na democracia na tomada de decisões e na consequente construção coletiva de um planejamento da luta com o qual todas e todos se identifiquem, assumam compromissos e tarefas e se dediquem intensamente para sua realização.

A conjuntura política que vivemos hoje é altamente regressiva: estão na ordem do dia o fortalecimento do capital financeiro e a submissão das elites nacionais; a agressividade do imperialismo em ocupar e controlar territórios para a exploração máxima dos recursos da natureza e do patrimônio do país e um novo acordo (muito semelhante ao anterior) para a entrega de Alcântara foi firmado pelo Brasil com os Estados Unidos, chamado agora de Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), e aprovado pelo Congresso Nacional.

Portanto, os desafios enfrentados 20 anos atrás, pelos Plebiscitos Nacionais da Dívida Externa e da ALCA, voltam a nos confrontar. Neste momento é importante que recordemos os processos vividos, os aprendizados e a força que conquistamos naquele período da nossa história, e voltemos ao enfrentamento atual com toda experiência e sabedoria necessárias.

Hoje são diferentes o contexto, as condições da luta e os instrumentos que podemos utilizar para realizá-la: temos uma elite mundial mais hegemonizada pelo capital financeiro e mais agressiva, alinhada com a extrema-direita; temos elites nacionais mais subalternas e mais dispostas a recorrer ao golpe, à ditadura e à repressão, por outro lado, temos mais setores da sociedade civil com possibilidade de mobilização; temos mais ferramentas digitais para articulação, comunicação, para denúncias e ações coletivas, em qualquer nível, do local ao internacional; temos também mais possibilidades de acesso a organizações e instâncias internacionais de direitos humanos e mais instrumentos legais possíveis de serem acionados.

Defender os interesses econômicos do país nas negociações internacionais; lutar contra os mecanismos perversos do endividamento e contra a submissão das elites ao capital financeiro internacional e lutar, junto com as comunidades quilombolas de Alcântara, em defesa do território e da soberania nacional, contra a sua entrega ao imperialismo norte-americano, são tarefas atuais na luta unitária e popular.

Recordando, aprendendo e nos inspirando com as vitórias do passado, certamente teremos novas vitórias pela frente. Fundamental é saber escutar e saber dialogar com o conjunto do povo brasileiro, em toda sua diversidade social, econômica, racial, étnica, regional, cultural, geracional e de gênero, construindo com essa diversidade as lutas coletivas e fortalecendo o seu protagonismo político.

O protagonismo político do povo brasileiro é condição básica para chegarmos até as transformações estruturais que buscamos e que os Plebiscitos Nacionais da Dívida Externa e da ALCA colocaram no nosso horizonte.

Cabe a nós retomarmos essa luta histórica.

Paulo Maldos é psicólogo, Secretário Executivo do Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais (CAIS).

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