Neste texto, o sociólogo Luis Fernando Novoa Garzon, membro da Rede Jubileu Sul Brasil e especialista em impactos socioambientais de megaprojetos na Amazônia, se aprofunda em elementos significativos sobre o crime socioambiental causado pela empresa Vale em Brumadinho, no estado de Minas Gerais.
O desastre é considerado uma das maiores tragédias da mineração no Brasil, uma ferida ainda aberta para os familiares das vítimas e atingidos. Os alarmes não soaram quando a barragem da mina se rompeu, fazendo com que 13 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de minério devastassem a região, matando 259 pessoas, grande parte, trabalhadores da própria Vale.
O contexto das indústrias extrativistas no Brasil
Por Luis Fernando Novoa Garzon*
A rotação dos desastres em um capitalismo fundado na espoliação permanente e na “irresponsabilidade organizada” propicia a rotinização de catástrofes sociais e ambientais produzidas por grandes projetos agrícolas, minerais e de infraestrutura. O que o crime de Brumadinho expressa é resultado de uma economia reflexa de larga escala, que dispõe seu território de forma compulsória a dinâmicas exógenas, expondo a população e o meio ambiente a catástrofes em série.
O padrão de especialização regressivo adotado pelo Brasil nas últimas décadas se vincula ao fato de o país ter se tornado um alvo diferenciado das estratégias de mundialização de capitais voltados para o fornecimento (global sourcing). Em meio a tabula rasa da desindustrialização promovida nos anos 90 via câmbio e liberalização comercial restaram os estoques de recursos naturais demandados pelas chamadas “cadeias globais de valor”, termo usado para dissimular dinâmicas de reprodução ampliada de burguesias imperialistas em disputa e/ou em composição.
Plantas de extração e de processamento de recursos naturais (soja, gado, minério de ferro, celulose, etanol, siderurgia, metalurgia, petroquímica, cimento etc.) são implantadas e expandidas no Brasil como uma derivação de acordos setoriais privados em escala global, contando com pleno suporte político-institucional interno para tanto.
A premissa, aqui experimentada nesse capitalismo de desastres, é que os processos de implementação de empreendimentos baseados em recursos naturais dependem de cidadelas de poder irrestrito, de “não lugares” políticos em zonas crescentemente purificadas de qualquer contratualidade social.
As dimensões do impacto socioambiental do crime da Vale em Brumadinho
A espoliação e privatização de tantas riquezas territorizadas (águas, terras, subsolo, florestas, redes urbanas e malhas de infraestrutura) não poderiam se viabilizar sem um consorciamento multiescalar entre capitais e agências públicas e semi-públicas; no caso, o Estado brasileiro em suas três instâncias e níveis.
A relação do setor mineral, e da Vale em particular, com o Estado é exemplar nesse sentido. Mais ainda em Minas Gerais, sede da multinacional “brasileira” e zona originária de exploração mineral no país (ouro e depois minério de ferro). A aprovação de um Código Mineral maleável e a flexibilização do licenciamento ambiental e da fiscalização das atividades tornaram-se “condições necessárias” para o aporte de novos investimentos e para o estabelecimento de fidelizações bonificadas entre empresas, representantes políticos e técnicos comissionados. As crises internacionais, com seus rebatimentos internos, servem sempre como cenário para novas chantagens dos investidores privados junto ao governo de Estado e Prefeituras envolvidas.
O crime hediondo concretizado em 25 de janeiro de 2019, em Brumadinho, que resultou na morte de 270 pessoas e na contaminação de milhares de quilômetros de curso d’agua da bacia do rio Paraopeba foi antecedido por outro crime ocorrido em Mariana em 05 de novembro de 2015 com dezenas de mortos e com o comprometimento irreversível do conjunto da bacia do rio Doce, que corresponde a uma área equivalente aos territórios da Alemanha e da Inglaterra somados. Nas duas tragédias induzidas, a empresa protagonista foi a Vale, ex-estatal privatizada nos anos 1990, depois fortemente financeirizada e incubada por bancos e capitais norte-americanos e canadenses e, finalmente, turbinada com recursos públicos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) na última década.
As parcerias com a Vale se alternam em um caso e outro: Samarco (com participação acionária japonesa significativa) e BHP Biliton (anglo-australiana) no último e a consultora alemã TüvSüdno no primeiro. O que está em questão é uma prática criminosa sistemática por parte dessas mineradoras e associadas perpetradoras de genocídios e ecocídios continuados. Não se trata aqui de eventos isolados, mas de um método que reorganiza o processo produtivo sob impulso da máxima rentabilização apelando para a sintetização de povos e territórios na forma de custos e riscos financeiros.
O que aconteceu após um ano do desastre socioambiental?
Passado pouco mais de um ano da chacina socioambiental de Brumadinho, o método de normalização dos danos e de apagamento das responsabilidades se consolidou. Desde o rompimento da barragem de Fundão em Mariana, em 2015, a Vale e sua rede de cúmplices institucionais nos governos federal e estadual, no Parlamento e no Judiciário, vêm determinando quais são as pessoas e áreas afetadas e quais não são. No país das commodities, os criminosos socioambientais é que definem seu próprio “castigo”, ou seja, o devido nível de reparações e indenizações ao meio ambiente e à população. O mesmo dinheiro que falta para atenuar os efeitos dos mega-desastres da mineração não falta para capturar técnicos e cientistas para aferirem apenas aquilo que lhes for encomendado.
No plano jurídico-institucional, apesar dos meritórios esforços do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (o Ministério Público Federal mergulhou na rede de cumplicidade), foram multiplicados instrumentos de negociação extrajudicial (TACs), além de acordos rebaixados individuais, que implicam em uma renúncia prévia dos demandantes à responsabilização integral das mineradoras pelos inomináveis danos perpetrados. Danos que perdurarão por gerações por conta de todas as perdas humanas, sociais e ambientais envolvidas.
O rio Paraopeba, um ano depois, se tornou um extenso território condenado, sufocado e contaminado com lama tóxica com grandes concentrações de ferro, alumínio e mercúrio. Dezenas de cidades perderam sua fonte de captação de água e os pescadores e agricultores tiveram suas atividades inviabilizadas ao longo do rio. Ademais de criar zonas de sacrifício ao redor dos grandes projetos de extração e processamento de recursos naturais, o caso de Brumadinho inaugura uma nova e macabra fase que impõe sacrifícios humanos em larga escala.
Se parece não ter havido qualquer aprendizado por parte da esfera empresarial e político-institucional, a indústria de tragédias em que se transformou a mineração no Brasil estabeleceu um novo marco cognitivo e organizativo por parte das populações atingidas e dos movimentos sociais. As mobilizações crescentemente se dirigem não para fortalecer posições negociadoras, mas para exigir espaços autônomos de averiguação, dimensionamento e fiscalização das reparações.
Frente à concentração do poder da Vale e empresas coligadas, é inócuo recorrer a institucionalidades rotas e capturadas. A reparação integral do meio ambiente e as justas indenizações aos familiares de mortos e desaparecidos e demais famílias atingidas não se resumem a uma equação contábil. Essas ações devem indicar para o conjunto da sociedade e para os segmentos empresariais que continuam fazendo do desastre seu negócio que tais práticas não serão mais toleradas.
*Este artigo foi originalmente publicado no Boletim Informativo de 02 de fevereiro do Jubileo Sur Americas.