Especulação imobiliária, plano “de gabinete”, crise climática e os impactos da pandemia estão entre os desafios enfrentados por lideranças e comunidades na revisão do Plano Diretor de Fortaleza. Confira a entrevista com Cícera da Silva Martins e Francisco Fernando, do bairro Planalto Pici.
Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil
Já pensou em como será a cidade onde você mora daqui a uma década? Como você gostaria que fosse? Planejar os rumos da vida urbana sempre foi importante, mais ainda na atualidade com a crise climática que afeta as populações de forma desigual. Por muito tempo no país esse foi um planejamento exclusivo às mãos do poder público, muitas vezes influenciado nos bastidores – ou mesmo às caras – por especuladores imobiliários e empresários, longe dos olhos e da voz das comunidades e territórios.
O fim dessa exclusividade só veio em 2001, depois de um processo de embate coletivo que resultou na criação do Estatuto da Cidade (Lei 10.257) e, com ele, a obrigatoriedade de um plano diretor em todos os municípios brasileiros com mais de 20 mil habitantes. O plano diretor é que orienta os rumos do desenvolvimento urbano num período de 10 anos, deve ser elaborado com participação popular e revisto ao menos uma vez a cada década.
Como define o Estatuto da Cidade, “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”. Em Fortaleza (CE), dezenas de lideranças estão engajadas em garantir a participação popular, a defesa de direitos e interesses das comunidades mais vulneráveis no Plano Diretor da capital cearense.
“Quem garante que a gente ainda vai viver na cidade ou não? Porque se o empresariado, os especuladores imobiliários, tomarem conta da cidade, nós que moramos na periferia ficamos de que jeito? Como já acontece em Fortaleza, eles [os especuladores] estão nos colocando para fora da cidade, não é?”, questiona Cícera da Silva Martins, moradora do Planalto Pici, onde mobiliza a luta feminina por moradia digna, orçamento e políticas sociais.
Do Movimento dos Conselhos Populares (MCP), membro da Rede Jubileu Sul Brasil no Ceará, Cícera está engajada na revisão do Plano Diretor atuando como conselheira e presidindo o Conselho Gestor das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) de Fortaleza. Ela representa a ZEIS Prioritária Pici, formada por quatro assentamentos com uma população de mais 24.700 habitantes.
A revisão do Plano Diretor de 2009 deveria ter ocorrido em 2019, mas o processo foi afetado pela pandemia. Em 2020, mesmo em meio à crise da Covid 19, a Prefeitura de Fortaleza quis dar seguimento à revisão desconsiderando a obrigatoriedade da participação popular.
“Se dependesse da prefeitura, tinham feito o plano diretor dentro do gabinete, com uma proposta feita junto com a especulação imobiliária. Nós barramos, exigimos através do Ministério Público que o plano fosse feito com a participação popular. Temos nos organizado e lutado para participar e não deixar que a revisão aconteça só por meio do poder público e dos empresários da construção civil, que têm interesse nos territórios da cidade, como os locais onde querem construir prédios”, denuncia Francisco Fernando, conselheiro no Fórum Permanente das ZEIS e do Conselho Municipal de Habitação Popular de Fortaleza (COMHAP).
Graças à mobilização das comunidades, a Prefeitura acatou recomendação do Ministério Público (MP) do Ceará, que orientava a suspensão da revisão, retomando os debates para participação popular efetiva depois da pandemia. A articulação de lideranças também resultou no surgimento Campo Popular do Plano Diretor, grupo de lideranças de organizações da sociedade civil e movimentos sociais, como o MCP.
“No Campo Popular, nos reunimos e discutimos como vamos atuar nesse planejamento”, diz Cícera ao comentar um dos desafios do grupo: o enfrentamento à tentativa de se “empurrar” a população menos favorecida para regiões cada vez mais distantes, na região metropolitana da capital.
“Vão casas, é construído condomínio, mas não tem escola, transporte, segurança, nenhum tipo de acessibilidade. Isso prejudica quem mora no local e impacta outros bairros porque aumenta a demanda nos postos de saúde, nas creches. Começamos a discutir essa questão no Campo Popular e continuamos nesse enfrentamento porque é pesada e especulação imobiliária, principalmente nas zonas de praia e ambientais”.
Na entrevista concedida ao Jubileu Sul Brasil, Cícera e Fernando compartilham seus relatos da caminhada para construção coletiva e popular do Plano Diretor de Fortaleza.
O que é o plano diretor? Qual a importância e a da participação popular na elaboração desse planejamento?
Francisco Fernando: Toda cidade com mais de 20 mil habitantes tem que ter uma lei sobre o planejamento do município do ponto de vista urbanístico, áreas ambientais e moradia. Daí a importância do plano diretor, porque é um plano participativo da cidade. Convoca a população a cada 10 anos para planejar a cidade, sobre como a cidade pode ficar boa para as pessoas a partir desse planejamento participativo. A luta e a grande importância é que podemos participar, é obrigatória a participação da população e isso é um grande avanço.
Cícera da Silva Martins: Lutamos para que esse direito fosse garantido e trouxesse a questão da moradia nas cidades e zonas rurais com mais dignidade. Para mim, o plano diretor traz isso, porque pensa como vai ser a cidade num período de 10 anos, e porque salientamos: quem garante que ainda vamos vai viver na cidade ou não? Porque se o empresariado, os especuladores imobiliários tomarem conta da cidade, nós que moramos na periferia somos colocados para fora da cidade, como já acontece em Fortaleza.
As pessoas estão indo para residenciais, por exemplo o Minha Casa, Minha Vida, em lugares fora da capital, na região metropolitana, sem estrutura. Vão só as casas, é construído um condomínio, mas não tem escola, não tem ônibus, nenhum tipo de acessibilidade. Quando começamos a discutir, fizemos várias reuniões do Campo Popular do Plano Diretor e continuamos até hoje para poder fazer esse enfrentamento à prefeitura, porque é muito pesada a especulação imobiliária, principalmente nas zonas de praia e nas zonas ambientais. Eles querem tudo, se não tiver cuidado com isso e não fizermos parte desse planejamento, corre o risco de morarmos numa cidade que não queremos, que não foi planejada porque ficamos sem acessibilidade, transporte, segurança.
A Prefeitura tentou revisar o plano diretor em meio à pandemia, de forma virtual e sem diálogo. Como vocês vêm atuando para garantir o direito efetivo à participação popular no plano diretor?
Cícera: Em 2020, pedimos ajuda à Defensoria do Ministério Público do Ceará porque não seria um plano diretor participativo. Nem todas as pessoas teriam acesso às formações, às discussões. Nem todos nas comunidades têm acesso à internet, celular e computador e, das pessoas que têm, nem todas sabem manejar essas tecnologias. O MP barrou e a revisão só voltou depois da passagem da pandemia. Nós nos engajamos porque já tinha as reuniões que fazíamos com o Jubileu Sul Brasil, com o projeto Sinergia Popular, depois com a Ação Mulheres por reparação das dívidas sociais. Nós discutimos muito a moradia, principalmente essa questão do plano diretor.
Como as reuniões e diálogos acontecem? Como se dá esse processo e as etapas de elaboração?
Cícera: Começamos a planejar e com o Campo Popular começamos a pensar nas reuniões que seriam as primeiras reuniões territoriais porque, pelo plano diretor, Fortaleza é dividida em 12 regionais e 39 territórios. As reuniões da primeira etapa foram para apresentar o plano diretor, da segunda foi para mostrar o que tinha avançado na revisão do plano de 2009, além de avaliações, porque muitas coisas do plano anterior não andaram, não saíram do papel. A terceira etapa é a das propostas e também das reuniões temáticas, por exemplo, a questão ambiental.
Depois da elaboração de propostas, todo esse planejamento vai para Conferência da Cidade, onde tudo que foi discutido vai ser visto e aprovado pelos delegados e delegadas eleitos, e de lá vai para a Câmara de Vereadores para poder ser aprovado depois do projeto de lei.
Como participantes dos conselhos, quais reivindicações vocês têm levado e defendido para as comunidades no Plano Diretor?
Francisco: Buscamos a ampliação e manutenção das Zeis porque não se pode falar de zonas de interesse social, de construção de casas, se não tiver terrenos vazios onde possamos colocar as Zeis e construir, se necessário for. Em Fortaleza há comunidades tradicionais, como os quilombolas e pescadores, que estão dentro de áreas de proteção ambiental, por isso uma luta para que pela primeira vez sejam inseridas três áreas de proteção ambiental específicas da capital.
Temos questionamento com algumas propostas de índice urbanístico da Prefeitura, que vão expulsar os moradores das periferias para ainda mais longe da cidade. No Planalto Pici por exemplo, só poderiam ser construídos prédios de até três andares, e na proposta de revisão do plano, a Prefeitura coloca a construção de até 20 andares. Quem é que vai poder morar num prédio de 20 andares? Não é pobre! Se a prefeitura flexibilizar isso, com o passar dos anos os moradores vão ser expulsos pela especulação imobiliária que tem dinheiro, que vai comprar os terrenos e com preços mais caros. E quanto mais prédios, mais a população pobre fica afastada.
Também estamos reivindicando que o plano guarde as áreas de preservação que já existiam em 2009, porque nessa revisão a Prefeitura retirou duas áreas das Zonas Especiais de Interesse Ambiental, as ZEIAs. Áreas que a Prefeitura não cuidou e retirou da proposta de revisão sem dizer o motivo, e que não cuidou porque tem um especulador imobiliário naquele terreno. Não concordamos com a redução das áreas e estamos lutando contra isso, além da reivindicação para incluir outras, como a Área de Proteção Ambiental da Sabiaguaba e o Morro do Mucuripe.
Melhoria da política ambiental da cidade é outra reivindicação, principalmente pela questão da mudança climática. Qual o tipo de planejamento é necessário para mitigar os efeitos das mudanças climáticas em Fortaleza? É um planejamento que não pode ser mais como no passado, só de construir. Como a emergência climática está sendo pensada na cidade? Estamos colocando essas questões para que sejam levadas em consideração, inclusive propusemos a criação de um fórum de discussão das mudanças climáticas em Fortaleza.
De que forma vocês têm buscado incidir politicamente nas ações do plano?
Francisco: Conhecendo os instrumentos e para que servem. Temos apoio de algumas assessorias, como a da Rede Jubileu Sul Brasil em reuniões das comunidades e das Zonas Especiais de Interesse Social, as Zeis, para entender como funcionam esses instrumentos e como podem ser usados para beneficiar as comunidades, principalmente as periféricas. Essa é a importância do plano diretor, tem uma relevância política e socioambiental.
Junto com as Zeis, que outros instrumentos são relevantes para as comunidades no plano diretor?
Francisco: No plano diretor de Fortaleza foi previsto o instrumento das Zonas Especiais de Interesse Social. É importante porque, como diz o próprio nome, as Zeis prevêem áreas especiais da cidade, geralmente nas periferias, nas quais o poder público tem que dar uma atenção maior porque são mais precárias. Daí sua importância no plano diretor, além de outros instrumentos como o IPTU regressivo, que fica com valor menor ao longo dos anos para as famílias de baixa renda, e a outorga onerosa, que permite construir além do limite num terreno, mas com uma compensação, uma contrapartida ao poder público para ser revertida em melhoria urbana. Todos são instrumentos previstos no plano diretor que podem ser aplicados na cidade para a moradia digna.
Nessa trajetória de tantas lutas, que conquistas e avanços vocês destacariam?
Cícera: Os conselhos gestores são uma vitória da participação popular, como o Conselho Gestor das Zeis, onde atualmente sou presidente, porque só se define as Zeis no plano diretor, não existe nenhum outro momento em que seja possível. Por isso a relevância das parcerias é muito grande, nós nos ajudamos muito nas lutas aqui.
Francisco: Outra conquista foi a eleição do Núcleo Gestor de Revisão do Plano Diretor, que é instrumento de acompanhamento das reuniões do plano, com um grupo de 30 pessoas, metade da sociedade civil e metade do poder público. Todas essas reuniões e a metodologia de trabalho foi debatida no Núcleo Gestor, para depois seguir para os territórios, e isso continua.
Como é a articulação e as parcerias com as organizações e movimentos populares nessa luta coletiva por participação no plano?
Cicera: Com o engajamento do MCP junto com a Frente de Luta por Moradia, principalmente na questão da habitação. É uma parceria que vem desde a época da Copa de 2014, quando a Frente surgiu devido à construção do VLT de Fortaleza. A parceria do Jubileu Sul Brasil com o MCP continua forte e articula também outras comunidades, como o Conjunto Palmeiras e Raízes da Praia, além das parcerias com pastorais, movimentos, ambientalistas, assessoria jurídica, mandatos parlamentares que a gente se articula e as universidades, principalmente a Universidade Federal do Ceará.
Mantemos esse diálogo que é fundamental, inclusive agora com um seminário sobre os 10 anos da Copa, porque desde aquela época de construção do VLT tem gente com aluguel social. Famílias foram removidas e ainda não têm casa para morar, por isso a nossa luta é pela cidade. Tem as especificidades da luta do nosso território, da nossa Zeis, mas quando estamos nestes espaços falamos de uma forma mais abrangente e também levamos mais diretamente as nossas propostas.