Apesar da proibição pelo Supremo Tribunal Federal, operações policiais aumentaram mesmo com a pandemia de coronavírus. No Complexo da Maré, a comunicação comunitária é uma das armas contra a militarização e o coronavírus

Protesto das comunidades no Rio de Janeiro. Foto: Daiene Mendes
Protesto das comunidades no Rio de Janeiro.
Foto: Daiene Mendes

No início de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu operação policial nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, numa decisão liminar que restringe as operações às situações “absolutamente excepcionais”, com autoridade competente justificando por escrito e comunicado ao Ministério Público estadual.

Apesar da decisão do STF, na manhã de 17 de junho houve tiroteio entre policiais e traficantes na Favela da Maré, com um porta-voz da Polícia Militar alegando que havia “uma tropa em deslocamento” à cidade de Angra dos Reis que tomou tiros vindos do Parque União, levando a tropa a entrar na comunidade emergencialmente.

A violência militarizada e o controle dos corpos pelo governo nas favelas são crescentes nas últimas décadas e ainda piorou na gestão do governador Wilson Witzel (PSC).

Em 2019, as 16 comunidades que formam o complexo da Maré, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, foram alvo de 39 operações policiais: uma a cada 9,4 dias ou quase 300 horas, resultando em 49 mortes por armas de fogo (uma morte a cada 7 dias), das quais 34 devido à ação policial e 15 por grupos armados, além de 45 feridos, aponta o Boletim Direito à Segurança Pública na Maré elaborado por organizações não governamentais. O índice aumentou 100% no governo Witzel – em 2018, foram 24 mortes por violência armada e 11 feridos.

O estado do Rio de Janeiro está em 14º no país em apreensão de armas, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e está em 1º lugar no Brasil no índice de vítimas de letalidade violenta: em 2018, das 6.714 vítimas no Rio, 81% (5.453) foram mortas por armas de fogo, segundo dado Instituto de Segurança Pública (RJ).

Pandemia agrava violações em comunidades cariocas

Foto: Kati Tortorelli/RioOnWatch
Foto: Kati Tortorelli/RioOnWatch

Em 2020, nem a pandemia de coronavírus (COVID-19) nem a recente decisão do STF cessam a militarização e as violações contra os favelados praticada pelo Estado. Ao contrário, as intervenções militares aumentaram, como relata a moradora da Maré e jornalista Gizele Martins, 34, comunicadora comunitária e ativista há 20 anos.

“Num contexto como esse de pandemia, em que os governantes deveriam estar resguardando, salvando nossas vidas, é o momento que eles mais atiram, em que há mais operações policiais e mais homicídios cometidos nas favelas pelas polícias do Rio de Janeiro, com mais jovens negros assassinados, número que aumenta se comparado ao mesmo período do ano passado. Ou seja, as dificuldades que temos enfrentado nas favelas e periferias neste momento no Rio são inúmeras”.

Entre os casos emblemáticos ocorridos neste período, está o de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, assassinado dentro de casa com um tiro pelas costas de fuzil calibre 5,56, o mesmo usado durante a operação das polícias Federal e Civil que levou à morte do menino em 18 de maio, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. 

Apesar da COVID-19, três meses se passaram e o governo não organizou nem estruturou o básico para enfrentamento da crise sanitária e socioeconômica. Hospitais e serviços de pronto atendimento estão sucateados, sem máscaras, remédios e unidades de terapia intensiva e, enquanto as operações policiais continuam, os moradores seguem sem sequer ter garantia de abastecimento de água que é uma das principais formas de evitar o contágio pelo vírus. 

Com uma população majoritariamente favelada, periférica, negra, nordestina, a jornalista conta que o Rio de Janeiro vem sendo historicamente laboratório de uma política de genocídio, racista, chamada de “política da morte”, onde a riqueza da cidade, que tem um dos metros quadrados mais caros do mundo, vive da mão de obra barata dos que residem nas favelas e periferias, numa desigualdade imensa e visível.

“A favela já é criminalizada desde sua existência, há 120 anos, e nas últimas décadas viramos laboratório, com governantes que gastam mais dinheiro na criminalização, militarização e controle dessa população do que em investimentos em saúde, educação, habitação, cultura, lazer, memória, comunicação”, critica Gizele.

A ativista explica que os primeiros caveirões, os carros blindados usados pela polícia fluminense, chegaram no Rio vindos do apartheid da África do Sul, e os novos blindados da política de apartheid e racista militarizada de Israel, país onde a Polícia Militar fluminense também fez treinamento do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE). Os governos atuais trouxeram os helicópteros blindados, o caveirão aéreo – o mesmo que leva o corpo de João Pedro a uma base aérea depois do tiro da polícia.

“É uma estrutura racista, que novamente nos exclui de qualquer direito e de tentarmos salvar nossas próprias vidas durante a pandemia. É o histórico de uma política que já não funciona para nós”, pontua a jornalista.

Comunicação comunitária para ações de luta e solidariedade

A jornalista e ativista Gizele Martins
A jornalista e ativista Gizele Martins

Mestre em cultura, educação e comunicação, Gizele Martins organiza e lidera formações sobre a história das favelas, comunicação comunitária e antirracista. É autora do livro “Militarização e censura – A luta por liberdade de expressão na Favela da Maré”.

A obra é resultado não só da pesquisa de mestrado, mas da experiência de vida da ativista sobre a atuação do exército em 2014 e 2015 na Favela da Maré para a realização da Copa do Mundo no Brasil, e trata dos impactos da militarização em meios de comunicação comunitários do conjunto de favelas da Maré, trazendo vivências e resistências.

E é exatamente a comunicação comunitária que tem sido ferramenta de ação para enfrentamento à militarização e também à pandemia nos territórios da Maré, com planos de comunicação interna e externa para que as informações cheguem a todos, pois nem todos os moradores têm acesso à energia e à televisão, rádio, internet. 

“Temos atuado também de uma forma midiática, fazendo uma assessoria de imprensa tanto para divulgar os trabalhos que temos feitos na favela, como a Frente de Mobilização da Maré e no Morro do Alemão, Santa Marta, Rocinha. E uma assessoria de comunicação que coloque nossa realidade como causa. Na maioria das vezes, há uma comunicação que não nos serve porque não coloca nossas particularidades, uma comunicação comercial que não nos comunica”, explica a jornalista.

Contra a COVID-19, vídeos, podcasts, cartazes e faixas espalhados em locais públicos das favelas, carro de som e também bicicletas pelas ruas, becos e vielas diariamente falando sobre cuidados e orientações para prevenir o coronavírus, com conteúdos produzidos seguindo as recomendações da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Foi criado o Painel #CoronaNasFavelas, que monitora os casos confirmados e mortes decorrentes da COVID-19 nas favelas do Rio de Janeiro – com 2.214 contágios e 448 mortes até o fechamento desta reportagem, dos quais 285 infectados e 70 óbitos na Maré.

E pelo site da Frente de Mobilização da Maré, da qual Gizele faz parte, foi criado um cadastro para levantamento das necessidades das famílias na pandemia, onde também é possível fazer doações para garantir as ações de solidariedade. Atualmente, são 3 mil cestas básicas distribuídas mensalmente, além de kits de higiene e ajuda para fornecimento de gás, com quase 100 voluntários envolvidos e usando máscaras, equipamentos de proteção individual, providenciando tanto a entrega como a higienização prévia dos produtos.

“É um trabalho enorme e somos todos voluntários, todos moradores da favela. Sofremos também com os tiros, violações, falta de direitos e tentamos fazer esse trabalho que é gigantesco, não é um trabalho fácil. Precisamos sempre de apoio porque somos uma favela com 140 mil moradores, é muita gente nas dezenas de favelas no Complexo da Maré”, conclui.

Favela do Complexo da Maré. Foto: Marco Derksen/Flickr/CC
Favela do Complexo da Maré.
Foto: Marco Derksen/Flickr/CC

O lugar da Maré

Os quase 140 mil habitantes do complexo da Maré, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, estão num bairro com um conjunto de 16 comunidades que surgiram e se consolidaram entre 1940 e 2000, às margens da Baía de Guanabara, por movimentos de ocupações e intervenções públicas do governo. A mais antiga é o Morro do Timbau (1940) e a mais recente Novo Pinheiros (2000).

De acordo com o Censo da Maré, 51% dos moradores são mulheres; 62,1% se declaram negros e pardos;  61,8% vivem na Maré desde que nasceram; quase 10% têm entre 25 e 29 anos.

Vivem sem água canalizada 0,3% dos moradores e 26,4% têm que levar o lixo até o local de coleta; 37,6% da população estudou até o ensino fundamental e, dos adolescentes entre 15 e 17 anos, quase 20% estão fora da escola.

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