Revisão do Anexo C do Tratado de Itaipu, em 2023, abre oportunidade para reversão de dívidas históricas. O tema é foco da articulação do Cone Sul, no Jubileu Sul Américas.

Foto: Rubens Fraulini / Itaipu Binacional

Paulo Victor Melo | Especial para o JSB

A história em torno da segunda maior hidrelétrica do mundo – a binacional Itaipu – é um dos mais emblemáticos exemplos da tese de que o Brasil exerce, em diversas questões político-econômicas, uma lógica neocolonialista em relação aos demais países da América Latina. A respeito disso, em entrevista à Deutsche Welle, o professor Oliver Stünkel, da Fundação Getúlio Vargas, afirmou que “em muitos aspectos, os países [da região] veem o Brasil com um olhar semelhante ao que a América do Sul tinha sobre os Estados Unidos. É uma mistura de admiração e rejeição”.

Quando o assunto é Itaipu e a relação Brasil-Paraguai, não podemos falar de admiração. Ao contrário.

Mais de 4 milhões de dólares. Esse é o montante da dívida ilegal que Itaipu gerou para o Paraguai, de acordo com um relatório da Controladoria Geral da República daquele país. Divulgado em julho deste ano, o documento aponta que, ao fornecerem energia elétrica a um custo menor para o Brasil entre os anos de 1985 e 1997 (com exceção de 1991), as autoridades de Itaipu promoveram uma evidente transgressão ao tratado entre os dois países, provocando um aumento indevido e ilegal da dívida paraguaia.

Em coletiva concedida à imprensa para apresentação do relatório, o Controlador Geral da República do Paraguai, Camilo Benítez, declarou que “Itaipu aplicou tarifas abaixo do custo dos serviços de eletricidade, a pedido dos representantes brasileiros, alegando dificuldades econômicas, e com a complacência dos representantes paraguaios, em clara violação do Anexo C do Tratado de Itaipu, perdendo assim US$ 1.757.128.833, e gerando uma dívida ilegal de US$ 4.193.500.000 contra seus próprios interesses e a favor da Eletrobras”.

Este Anexo C, comentado por Benítez, que estabelece as bases financeiras e de prestação dos serviços de eletricidade entre os dois países, será revisado em 2023, quando o Tratado de Itaipu completará 50 anos de vigência.

Usina Hidrelétrica de Itaipu, na fronteira do Brasil com Paraguay

Engenheiro industrial e especialista em hidroeletricidade, o paraguaio Ricardo Canese compreende que, a revisão do Anexo C, é uma oportunidade de “terminar para sempre o confisco da energia paraguaia, a preço vil, pelo Brasil”.

Para isto, Canese, que é um dos membros do seu país no Parlamento do Mercosul, avalia ser fundamental a mudança de orientação do presidente paraguaio.

Em entrevista recente ao jornal Ultima Hora, Canese lembrou que, em diferentes momentos, o governo Mario Abdo Benítez abdicou da soberania hidroelétrica, “numa reiteração da política de submissão aos interesses do Brasil, liderada por Jair Bolsonaro”. Caso o chefe do Executivo paraguaio opte mais uma vez por este caminho em relação a Itaipu, “o Paraguai perderá uma oportunidade histórica de obter o que é nosso por direito”, acredita

Entendimento semelhante tem Ikaro Chaves, diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobrás (AESEL), que defende a destinação da energia produzida por Itaipu em medidas de melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs dos dois países.

“A partir do momento em que a usina estiver amortizada, quando não tiver mais dívida com relação à construção daquela obra, os dois países terão uma oportunidade muito grande de reverter em benefício das suas populações aquela energia que é produzida, porque hoje a maior parte do recurso das contas de energia da população é destinada para o pagamento a dívida e os juros da dívida de Itaipu”, argumenta.

Ikaro avalia, porém, que o compromisso tanto do governo Bolsonaro quanto do governo Benítez é com a mercantilização do setor elétrico e o favorecimento do capital financeiro, em detrimento da população.

“O que o governo brasileiro quer? Pegar o excedente paraguaio para vender no Brasil, através das comercializadoras. E vimos isso claramente no escândalo do caso Leros, em que a delegação brasileira teve a capacidade de levar um empresário do setor de comercialização de energia, que por acaso hoje é senador da República, Alexandre Giordano, MDB/SP, para tentar fazer negócio e trazer energia paraguaia para ser vendida no Brasil por empresas privadas que atuam no mercado livre, sem gerar ou transmitir um kilowatt, mas ganhando dinheiro com a especulação. Precisamos desmascarar esse plano do governo brasileiro, em conluio com o governo paraguaio, que é cumplice deste processo”, critica.

Leia aqui sobre o caso Leros, mencionado por Ikaro.

Mercantilização da energia

Para Ikaro, essas intencionalidades em relação à Itaipu devem ser analisadas dentro “do grande processo de remodelação setor elétrico brasileiro, que começou no governo Temer” e visa o aumento do mercado livre, da margem de lucro das empresas comercializadoras e a transformação da energia elétrica em commodities, ficando passível de todo tipo de especulação.

“O processo de ampliação do mercado livre, que vai trazer um aumento da demanda por essa energia liberalizada, também tem como contrapartida o aumento da oferta de energia. E qual a estratégia do governo brasileiro? A privatização da Eletrobrás, que vai pegar toda a energia que está no sistema de cotas e colocar no mercado livre. Por outro lado, vai jogar uma quantidade de energia no mercado livre, para ser vendida num preço mais elevado e aumentar a margem de lucro do sistema financeiro. Isso vai aumentar a conta de luz e, ao mesmo tempo, aumentar muito a lucratividade dos acionistas do setor elétrico, principalmente do sistema financeiro, tanto no controle da Eletrobrás privatizada quanto das empresas comercializadoras de energia, o que já acontece hoje”, aponta algumas das consequências.

O integrante da AESEL explica também como Itaipu é afetada neste processo: “Itaipu hoje vende sua energia no sistema de cotas, é uma venda pelo custo. Custo de operação e manutenção da usina mais o custo financeiro da dívida, que é muito elevada. A partir do momento em que a dívida estiver quitada, o custo de Itaipu vai baixar bastante. E isso seria uma oportunidade para baixar a conta de luz dos brasileiros. Mas qual o objetivo do governo brasileiro? Não é baixar a conta de luz, mas pegar essa energia, colocar no mercado livre, vender através de comercializadoras, aumentando a margem de lucro dessas empresas. E, então, a conta de luz vai ficar ainda mais cara”.

Uma história de negociações entre as elites e de roubos

A prevalência de interesses econômicos privados sobre Itaipu, quase quatro décadas após a sua inauguração, tem origem ainda no Tratado assinado em 26 de abril de 1973, que permitiu a sua construção. Vale lembrar que, à época, os dois países eram governados por ditaduras militares-empresariais (Médici, no Brasil, e Stroessner, no Paraguai).

Em documento sobre a história da usina, Ricardo Canese frisa que “Itaipu foi concebida pela oligarquia brasileira, para seu enriquecimento, em união com a ditadura de Alfredo Stroessner” e que “foram cometidos grandes roubos por parte dos ‘barões de Itaipu’ dos dois países”.

O custo final da obra, aproximadamente 14 bilhões de dólares, um valor bem mais elevado que a previsão inicial, é um dado que sinaliza nesta perspectiva.

“Não apenas se roubou muito com a construção de Itaipu, mas também com o financiamento. O capital financeiro transnacional, radicado no Brasil, principalmente durante a ditadura militar, conseguiu um enorme negócio financeiro: emprestou menos de 10 bilhões de dólares e terminará recebendo mais de 60 bilhões, seis vezes mais”, denuncia Canese.

O fato da tarifa atualmente ter um valor seis vezes maior que o projetado e a opção das ditaduras militares em não pagar a dívida já no início das operações de Itaipu, entre 1985 e 1986, são outros indícios dos favorecimentos entre governos e iniciativa privada.

“As ditaduras militares decidiram não pagar a dívida e ampliar o negócio financeiro. É por isso que a tarifa hoje é de 22,6 US$/kW-mês e não de 17,1 US$/kW-mês, como foi calculado em 1986 para ser constante até 2023 e para pagar toda a dívida com uma tarifa constante (…) O objetivo era ampliar o negócio financeiro. O capitalismo financeiro transnacional e privado brasileiro, que forneceu a maior parte do financiamento à Itaipu através da Eletrobras, ganhou mais de seis vezes por um empréstimo”, ressalta.

Uma história de destruição ambiental e genocídio

Além das cifras financeiras, e como parte da sanha por lucros, a história da construção de Itaipu é também de genocídio de diversos Povos Indígenas e de uma profunda devastação ambiental.

Um relatório de 2019 da Procuradoria Geral da República, elaborado durante três anos, confirmou que graves violações de direitos dos povos originários foram cometidos, inclusive com adulteração de procedimentos para subestimar o número de indígenas que habitavam a região.

Vale lembrar que, para a construção de Itaipu, cerca de 135 mil hectares de terra foram inundados e mais de 40 mil pessoas – entre indígenas e não-indígenas – foram realocadas “em condições piores do que as que enfrentava antes”, conforme descrito no documento da PGR.

O estudo concluiu que apenas uma pequena parcela da comunidade indígena de Ocoy foi reconhecida como indígena pela Funai, na época gerida por um general do Exército. Como destacado em um trecho do relatório, “todas as demais localidades existentes entre Foz do Iguaçu e Guaíra foram completamente ignoradas e as famílias indígenas que nelas viviam foram tratadas como posseiros e invasores (porque não tinha documentos das terras), sendo delas expulsas sem nenhum ressarcimento”.

Apenas em relação aos povos Avá-Guarani, estima-se que 38 comunidades do lado paraguaio e 36 do lado brasileiro foram desalojadas com gravíssimas violações de direitos e sem qualquer reparação digna.

Ao analisar mapas e registros cartográficos divulgados apenas no ano passado, Paulo Tavares, pesquisador da Universidade de Brasília, enfatizou que houve uma intenção da ditadura militar e dos órgãos de Estado de aplicar “uma estratégia perversa para expulsar famílias Avá-Guarani de suas terras e abrir espaço para a usina e para a colonização da área, atropelando a comunidade e sua cultura”.

Os documentos integram um Atlas feito a pedido do Ministério Público Federal depois que o sucessor de Raquel Dodge na Procuradoria-Geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo Tribunal Federal o arquivamento da ação de reparação de dados aos Avá-Guarani, num valor de R$ 150 milhões por ano desde a construção de Itaipu.

“Quando ajuizei a ação, entendi que não era nominal, mas em favor dos Guarani. Os indígenas não tiveram acesso à Justiça para ter direito à indenização. Os direitos deles foram sucessivamente negados como povo, comunidade, habitantes e como brasileiros”, declarou Raquel Dodge, em entrevista ao portal Uol.

Para Mercedes Canese, integrante da Frente Guasu, tanto Itaipu quanto a outra hidrelétrica binacional existente em seu país, Yacyretá (Argentina-Paraguai) têm dívidas históricas com os povos da América do Sul. “Essa é uma dívida odiosa que prejudica aos povos paraguaios, argentinos e brasileiros porque seguimos pagando uma dívida que deveria ser zero”, sublinhou.

Dívidas sociais e ambientais

Ex-vice ministra de Minas e Energia do Paraguai, Mercedes reforçou que as dívidas de Itaipu e Yacyretá são também sociais e ambientais, pelos impactos na natureza e em comunidades tradicionais. “Todo um ecossistema foi inundado, bosques e terras férteis que eram protegidas foram destruídas. Muitas pessoas dos três países, especialmente camponeses e indígenas, foram desalojadas e perderam suas formas de vida porque foram colocadas em territórios com características diferentes dos seus de origem. Se calcula que apenas dentre os indígenas, foram mais de 70 povos desalojados e que não tiveram territórios de iguais características restituídos”, acentuou Mercedes, durante Ciclo de Debates sobre lutas e desafios do Cone Sul, realizado em abril deste ano pela Rede Jubileo Sur Américas.

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