A iniciativa engajou dezenas de grupos em mais de 20 comunidades em sete cidades do país, mobilizando o protagonismo feminino na luta por direitos

Ação Mulheres no bairro Águas Claras, em Salvador (BA). Foto: Mila Souza/

Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil

Pelas ruas de terra, mães, avós e suas crianças caminham por até três quilômetros. A ausência de escola, posto de saúde e transporte obriga o percurso sob os mais de 30º do calor amazonense.  Em Valéria, maior bairro da periferia de Salvador (BA), lideranças debatem alternativas contra a fome, a especulação imobiliária e o racismo ambiental.   

Em Fortaleza (CE) e em Porto Alegre (RS), moradoras  de comunidades vulneráveis produzem artesanato, gerando renda e sobrevivência às famílias enquanto seguem o embate por regularização fundiária. Vindos do Haiti, Venezuela e continente africano, migrantes e refugiadas reconstroem a  vida unidas ao movimento de moradia, na capital paulista. Na região portuária do Rio de Janeiro (RJ), horta e cozinha comunitária alimentam a mobilização contra despejos, por teto, trabalho e comida no prato. 

As sequelas da crise pós-pandemia persistem, agravando a exclusão. As mulheres são as principais vítimas da falta de políticas públicas, da violência doméstica e das ruas, da fome e das desigualdades. Mas a  despeito dos desafios, são essas mesmas mulheres que  protagonizam a luta por direitos em suas comunidades, transformando realidades. 

Iniciada há três anos para fortalecer a atuação de lideranças, a Ação “Mulheres por Reparação das Dívidas Sociais” tem engajado dezenas de grupos em mais de 20 comunidades de todas as regiões do país. Mobiliza a partir das bases, onde o Estado não chega e, não raro, a Rede Jubileu Sul Brasil (JSB), a Semana Social Brasileira (SSB), a Central de Movimentos Populares (CMP) e parceiros locais do JSB são as únicas organizações atuando nesses territórios em Belo Horizonte (BH), Fortaleza (CE), Manaus (AM), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP). 

Cartografia social na comunidade Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre (RS). Foto: Sherlen Borges

Realidades em transformação

A  trajetória teve percalços, mas também avanços. Mulheres que conquistaram a casa própria,  voltaram a estudar, tiveram acesso à formação, ampliaram a incidência por direitos em seus territórios, além da presença nos espaços de participação política e a compreensão sobre como o orçamento e a dívida pública afetam a vida das mulheres. Com mobilização popular, parcerias e assessoria jurídica da ação, também foi possível a regularização fundiária, além dos despejos evitados e o reconhecimento de imóveis para habitação de interesse social.  

A troca permanente de experiências de luta,  conhecimentos e saberes tradicionais completam o legado da ação nos territórios, junto com os grupos produtivos que geram a renda imprescindível para a autonomia das mulheres.

A indígena Hellen Kokama faz parte de uma das 17 etnias que vivem na Nova Vida, comunidade de Manaus que recém conquistou a regularização de posse da área, depois de viverem desde 2018 sob constante ameaça de despejo. Essa regularização beneficia cerca de 3.500 famílias, A luta engajou,  sobretudo, as mais de 400 famílias indígenas que reivindicam direitos ancestrais sobre o território.

Hellen diz que não teria casa se não fosse a Ação Mulheres.  Ela é uma das lideranças nos grupos produtivos que em Manaus fazem biojóias e artesanato tradicional indígena.  

“Estou passando às mulheres todo o conhecimento Kokama da cultura familiar materna, a língua materna, e a  ação me deu essa  oportunidade de ensinar. Minha renda era de artesanato, hoje temos dezenas de mulheres aprendendo e isso é de suma importância porque vêm progredindo”, afirma. 

Elza Maria era doméstica. Com o estímulo da ação, terminou os estudos, fez curso de jardinagem, mudou de profissão. Hoje trabalha perto de casa, no centro do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que batalha por direito à posse de seu apartamento na Ocupação Vito Giannotti.

“Quero a regularização, poder ficar tranquila com minha família, com a certeza de que é minha casa, de que não vou para a rua onde já tem muita gente, nem sofrendo com aluguel, e assim poder ter uma alimentação melhor”, como relata a moradora em seu depoimento à série de videocast que retrata os territórios da ação (acesse no site ou no canal do YouTube Jubileu Sul Brasil).

A mobilização de mulheres como Elza, o apoio jurídico  são parte da soma de forças que  conquistou a  recomendação favorável do Ministério Público Federal para que o imóvel, pertencente ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), seja destinado como habitação de interesse social às famílias da ocupação. 

Educadora popular, a economista Sandra Quintela integra a equipe nacional da ação e  explica que “a Rede JSB não é movimento de moradia, nem movimento de mulheres. Nosso foco é o debate e a reparação das dívidas sociais, e num país com nosso histórico não é possível falar de reparação sem que as mulheres sejam prioridade. Daí a importância da continuidade, pelo impacto da ação nos territórios”, ressalta.

1 – Por região metropolitana das capitais; 2 – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal; 3 – Por mil nascidos vivos. Fontes: Atlas Brasil, IBGE, Relatório Déficit habitacional no Brasil – 2016-2019 (2022

Esta reportagem foi publicada originalmente na Revista Ação Mulheres de 2023, confira a publicação na íntegra.

As iniciativas da Ação “Mulheres por reparação das dívidas sociais” contaram com apoio do Ministério das Relações Exteriores Alemão, que garantiu ao Instituto de Relações Exteriores (IFA) recursos para implementação do Programa de Financiamentos Zivik (Zivik Funding Program). Também integraram o processo de fortalecimento da Rede Jubileu Sul Brasil e das suas organizações membro, contando ainda com apoios da Cafod, DKA, e cofinanciamento da União Europeia.

O conteúdo desta publicação é de responsabilidade exclusiva da Rede Jubileu Sul Brasil. Não necessariamente representa o ponto de vista dos apoiadores, financiadores e co-financiadores.

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