No dia internacional da luta contra as barragens, pelos rios, pela água e pela vida, o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB propõe a elaboração de uma política pública para as famílias atingidas pelas hidrelétricas. De acordo com Luis Dalla Costa, a proposta pretende garantir os direitos das famílias que são direta ou indiretamente impactadas pelos novos empreendimentos. Segundo ele, estima-se que aproximadamente um milhão de pessoas já foram prejudicadas pelas hidrelétricas brasileiras desde os anos 1970, e outras 60 mil serão atingidas em decorrência do Plano Decenal de Energia do governo federal.

Ao avaliar os 22 anos de atuação do MAB, Dalla Costa ressalta que houve um retrocesso no diálogo com o governo federal e o setor elétrico, desde a privatização no governo Fernando Henrique Cardoso. “A energia passa a ser vista não mais como um bem essencial para o desenvolvimento do país, mas como uma mercadoria e, como tal, quanto menor o custo da geração de energia e maior a lucratividade, maiores serão os benefícios para os setores privados. Nesse contexto, consolidou-se uma política privatista com interesse rentista do setor elétrico”, constata em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.

Além dos debates e manifestações no dia 14 de março, o MAB está preparando o Encontro Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens, que será realizado em São Paulo, de 3 a 7 de junho deste ano.

Luis Dalla Costa é coordenador geral do MAB.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quando e em que contexto surgiu o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB?

Luis Dalla Costa – O MAB surge com pequenas organizações em cada uma das regiões do Brasil a partir da década de 1970, reagindo à construção de grandes hidrelétricas no país, como a hidrelétrica de Itaipu, no Paraná, a hidrelétrica de Itaparica, na divisa de Pernambuco e Bahia, e com o projeto de construção de hidrelétricas na bacia do rio Uruguai e a hidrelétrica do Tucuruí, no Pará. A partir dessas lutas isoladas, houve muitas mobilizações de atingidos reivindicando os seus direitos, e no final dos anos 1980 começamos a organizar um movimento nacional. O primeiro encontro foi realizado em 1989, mas consideramos o ano de 1991 como data de fundação do MAB, onde reunimos várias experiências de trajetórias históricas de luta em defesa da terra, dos direitos dos atingidos.

Portanto, o MAB surge de um histórico caracterizado por uma situação de injustiça, em que as populações eram obrigadas a saírem de suas propriedades, de suas terras – a maioria deles era pequenos agricultores –, e num contexto no qual não havia nenhuma forma de tratamento das questões sociais e ambientais. Só para se ter ideia, no final dos anos 1980 sete mil pessoas foram afetadas com a construção da barragem de Itaparica. A hidrelétrica estava praticamente pronta e as famílias continuavam lá; tiveram de ocupar o canteiro de obras para garantirem direito a reassentamento e indenizações.

IHU On-Line – Quais as conquistas do MAB nesses 22 anos de atuação? Como os atingidos por barragens são vistos pelo governo brasileiro e como aconteceu esse diálogo ao longo do tempo?

Luis Dalla Costa – Depois dos anos 1990, houve uma mudança no sistema energético nacional, especialmente após o processo de privatização do setor. Assim, a negociação, que antes acontecia entre os atingidos e as estatais, passa a ter interferência das empresas privadas, muitas delas multinacionais. Quando a negociação era feita com as estatais, havia um avanço nas negociações, porque as empresas entendiam que os atingidos deveriam ser tratados de forma diferenciada. Nessa época, o MAB conseguiu realizar alguns acordos diretos, a exemplo do reassentamento de duas mil famílias atingidas pela barragem de Itá, em Santa Catarina. Na ocasião, a Eletrosul propiciou o reassentamento das famílias, contribuiu para a reconstrução das cidades e vilas a partir de um processo de participação da população na tomada de decisões.

O reconhecimento dos atingidos também aconteceu no Rio Grande do Sul, na usina de Dona Francisca, onde à época Dilma Rousseff era a secretária de Minas e Energia do Rio Grande do Sul. As famílias tiveram direito à indenização de parte dos seus bens e ao reassentamento. Portanto, havia uma política social de forma crescente no reconhecimento dos direitos dos atingidos.

Esse processo foi brutalmente interrompido por ocasião das privatizações, porque as empresas privadas, diferentemente da política de Estado, têm como objetivo único a lucratividade. Com esse objetivo, os direitos que haviam sido conquistados foram sendo retirados. A energia passa a ser vista não mais como um bem essencial para o desenvolvimento do país, mas como uma mercadoria e, como tal, quanto menor o custo da geração de energia, e maior a lucratividade, maiores serão os benefícios para os setores privados. Nesse contexto, consolidou-se uma política privatista com interesse rentista do setor elétrico.

IHU On-Line – Com o movimento dialogou com os governos Lula e Dilma?

Luis Dalla Costa – Com a eleição de Lula, pleiteamos a retomada de uma negociação com o governo federal, mas tivemos muita dificuldade, isso porque a lógica do setor elétrico se manteve. O governo federal retomou o planejamento do setor energético, que foi positivo, mas o diálogo com o governo federal só foi possível no final da gestão de Lula, em 2008. Na ocasião, o ex-presidente reconheceu que o governo tem uma dívida histórica com os atingidos.

Para se ter ideia, o Incra fez um levantamento de quantas pessoas ficaram sem terras por causa da construção de hidrelétricas. Foram cadastradas mais de 12 mil famílias. Reconhecendo a dívida social, Lula assinou um decreto instituindo que, antes da construção de hidrelétricas, faça-se um cadastro considerando todas as situações dos atingidos pelas obras. No entanto, até hoje não se tem uma política nacional para os atingidos por barragens. Até então só foram feitos acordos a partir da pressão e da representatividade do movimento. Na usina de Foz do Chapecó, onde houve participação da iniciativa privada, conseguimos reassentar somente 40 famílias, em contrapartida à usina de Itá, onde reassentamos 500 famílias. Houve um retrocesso extraordinário na política de direitos. É por isso que queremos reivindicar uma política nacional que garanta o direito dos atingidos.

IHU On-Line – Em que consiste a proposta do MAB no sentido de garantir uma política de direito para as famílias atingidas?

Luis Dalla Costa – Estamos discutindo com o governo a possibilidade de criar uma política de direito para as famílias atingidas há algum tempo, via secretaria geral da Presidência da República e alguns ministérios. O primeiro objetivo da política é definir quem é o atingido, ou seja, qual é o conceito de atingido, porque havia um conceito atrasado, chamado patrimonialista, que dizia o seguinte: “O único que tem direito a alguma coisa é quem tem a propriedade da terra, quem tem o título da terra”. Acontece que muitos dos que vivem na beira dos rios não têm sequer o título da terra, vivem de agregados, arrendatários, parceiros, meeiro, sem a escritura da terra.

Nesse sentido, avançou-se um pouquinho com o decreto de Lula, que define a população atingida como aquela que vive na região que será alagada assim como aquela que vive abaixo ou acima da construção da hidrelétrica, e que tem sua atividade econômica, social ou cultural comprometida por conta da construção das hidrelétricas. O segundo elemento é dizer quais são os direitos dos atingidos. Se a pessoa é um agricultor, a que ele tem direito? Se ela trabalha com pescaria, qual é seu direito? Se mora cidade, qual é seu direito? Quer dizer, temos de definir se as pessoas têm direito à terra, a uma casa, à relocação de água, de energia, etc.

Também precisamos determinar qual é o órgão do governo que será responsável pelo atendimento a essa população, porque hoje o governo licita uma obra, e o Ibama concede a licença, o Ministério de Minas e Energia encaminha o leilão, e quem se torna dono daquela área é uma empresa privada. Agora, a pergunta é: Qual é o órgão responsável para o tratamento das questões dos atingidos? Ninguém sabe. Então, temos de definir essa questão, porque entendemos que o governo deve se responsabilizar, pois é ele que concede a construção da hidrelétrica. Ainda é preciso definir de qual fonte virão os recursos para atender à indenização e ao reassentamento dessas populações atingidas. Basicamente esse é o esboço do que deve ser a política de direitos em nível nacional. Alguns setores do governo federal têm sensibilidade para essas questões sociais, e até foi feito um relatório sobre a violação de direitos humanos, no caso das hidrelétricas.

IHU On-Line – De acordo com o relatório da Comissão Mundial de Barragens, cerca de 80 milhões de pessoas foram atingidas direta ou indiretamente pela construção de usinas hidrelétricas no mundo. No Brasil, quem são os principais atingidos por barragens? Quais são as negociações atuais?

Luis Dalla Costa – Os atingidos estão em todas as regiões do país. Na bacia do rio Uruguai já foram construídas sete grandes hidrelétricas e ainda há muitas pendências. Em São Paulo há muitos problemas com os atingidos e com pessoas ameaçadas pela construção de barragens, como no Vale do Ribeira, por exemplo. No Nordeste, na bacia do rio São Francisco, na área da barragem de Sobradinho, que foi feita na época da ditadura militar, a situação dos atingidos ainda é vergonhosa. No Nordeste também tem outra usina chamada Acauã, que não serve para a produção de energia elétrica, mas para o abastecimento de água. Segundo o relatório dos direitos humanos, as populações atingidas foram submetidas a campos de exclusão, ou seja, aquilo que era para ser uma agrovila não era nem agro, porque não tinha terra, nem vila, porque não tinha condições mínimas de habitação, não possuía escola, transporte… Mais de 1200 famílias que foram atingidas continuam abandonadas, recebendo cesta básica do governo. No caso da barragem de Itaparica, no Nordeste, até hoje ainda não foram concluídos os processos de irrigação das terras do pessoal que foi reassentado. Então, existem inúmeros problemas em todo o Brasil.

Como ainda não há uma política específica para os atingidos, não é possível saber quantas pessoas foram atingidas pelas hidrelétricas no país. Estima-se que foram em torno de um milhão de pessoas. O atual Plano Decenal de Energia prevê que mais de 60 mil famílias serão afetadas no próximo período, incluindo os atingidos por Belo Monte, que somam quase 20 mil pessoas.

IHU On-Line – Em que consiste o projeto energético proposto pelo MAB?

Luis Dalla Costa – Propomos uma nova política energética, que tenha soberania nacional, distribuição de riqueza e participação popular. O atual modelo energético não tem soberania, porque fica dependente e refém dos interesses privatistas. Para se ter ideia, realizamos um estudo recente em São Paulo, onde averiguamos que a AES Eletropaulo teve lucro líquido de 900 milhões de reais no ano passado. O lucro foi remetido para os acionistas privados, e grande parte deles são estrangeiros.

Além disso, o Brasil tem a matriz energética mais eficiente do mundo, a energia provida da água, que é uma das mais baratas, e mesmo assim nós pagamos a quinta maior tarifa de energia do mundo, ou seja, tem alguma coisa errada. Depois do processo de privatização, o lucro das grandes empresas é extraordinário. Além disso, parte das estatais está nas mãos dos acionistas privados.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?

Luis Dalla Costa – Estamos construindo, junto com os trabalhadores do setor elétrico e os petroleiros, o que chamamos “plataforma operária e camponesa para a energia” e estamos alinhados no sentido de construir um projeto popular na área energética. No dia 14 de março, vamos realizar várias ações pelo Brasil, promover debates sobre essa questão da energia, comemorar e protestar para a garantia dos direitos dos atingidos por barragens em todo o Brasil e no mundo.

Fonte: IHU On-Line

 

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