Por Eduardo Ribeiro, da Vice

Para muitos pensadores, a autonomia individual representa o máximo da potencialidade humana. Ao longo do maior período da nossa história evolutiva, porém, uma espécie de temor ao exercício dessa autonomia, uma falta de crença em nossas próprias capacidades de autogestão, engendra-se em diferentes modelos político-sociais. Como um pêndulo, é algo que vai e volta mesmo nas sociedades consideradas mais avançadas. Por que, afinal de contas, muitas pessoas são capazes de colocar todo o seu discernimento de lado para seguir ideias de líderes políticos autoritários?

Intrigado com o fascínio dos seguidores desses políticos no atual espectro eleitoral do Brasil, fui atrás de saber, sob o prisma da psicanálise, por que alguém passa a acreditar na anulação do indivíduo em busca da representatividade. “Não é muito difícil descrever os padrões de engajamento neste tipo de funcionamento mental, em forma de massa, com forte propensão ao hipnotismo e fascinação pelo líder”, introduz Christian Ingo Lenz Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

“Isso se apoia na idealização da figura do mestre, assim como um dia idealizei a figura de autoridade paterna ou materna”

Segundo ele, o líder oferece um tipo de segurança e proteção que são confirmadas pela própria existência de um grupo de seguidores. “Ou seja, me sinto mais seguro, simplesmente porque pertenço a um grupo que tem a mesma referência que eu. Isso recapitula nossa experiência primária, real ou imaginada, com a nossa família. Isso se apoia na idealização da figura do mestre, assim como um dia idealizei a figura de autoridade paterna ou materna.”
E esta figura de liderança nem sequer precisa ser alguém fora do comum, muito pelo contrário. Em geral, a dinâmica funciona ainda melhor quando se trata de alguém banal, comum ou ordinário, de modo que possa captar a identificação das pessoas comuns que se veem representadas e elevadas ao poder por meio desta ligação privilegiada. “O líder é a encarnação e realização de nossos ideais”, continua Dunker. “Com isso, nossos ideais recebem uma mutação na sua consistência, eles não serão mais ideias reguladoras, que nos ajudam a seguir o caminho da vida, justamente porque não se realizam. Elas se tornam assim metas e objetivos dos quais nós nos tornamos os instrumentos para sua realização. Essa condição regressiva de objetos, manipulados e usados pelo líder, longe de ser repudiada, é sentida como manifestação autêntica do amor pelo líder”.

Capa de Psicologia das Massas e Análise do Eu, de 1921, em que Sigmun Freud aborda o fascínio por líderes autoritários. Imagem: Wikimedia Commons

Dunker prossegue na explicação. “A questão é tão problemática quanto parece ser, e assusta, pois a regressão cognitiva que faz com que os indivíduos se deixem levar pelo contágio de afetos os torna refratários ao debate de ideias e à confrontação com a contradição”, diz. “Assim, a ligação com a massa-líder substitui a escola, a informação, a história, o diálogo real e a investigação dos fatos que nos leva à emancipação e ao pensamento autônomo. Em vez disso, podemos nos sentirmos protegidos em nossa ignorância e em nossa soberba superioridade, que depende apenas do fato psicológico de que nos sentimos parte deste todo.”

“A postura firme e o discurso engessado de alguns líderes cativam de forma magnética essas pessoas que se sentem incompreendidas, inseguras ou até mesmo com um medo real do futuro”

Tiago Cabral, psicólogo social pela Universidade Católica Dom Bosco, com formação em neuropsicologia e psicanálise, comenta que tanto as seitas religiosas como lideranças extremistas pregam um conjunto de regras e comportamentos bem claros, de modo que seus seguidores devem seguir sem contestar. É a “coesão grupal”. “Existe algo mais tentador do que aplacar a insegurança com a certeza?”, questiona Cabral. “A postura firme e o discurso engessado de alguns líderes cativam de forma magnética essas pessoas que se sentem incompreendidas, inseguras ou até mesmo com um medo real do futuro. E é importante destacar que nível de instrução não torna alguém imune a esses gatilhos”.

Segundo o psicólogo, geralmente há um sentimento nessas pessoas de inadaptação social. “O mundo está mudando e as pessoas não estão conseguindo entender muito bem o que está acontecendo, e elas começam a se sentir perseguidas ou a pensar que a sociedade atual está indo pelo caminho errado. É também, ao meu ver, uma questão de falta de comunicação”, diz. “O fato é que as respostas fáceis que essas personalidades apresentam parecem falar de forma clara com essas pessoas, e isso é perigoso. O discurso dessas personalidades é como fast food. O fast food é doce e cheio de gordura e fala diretamente com o que há de mais instintivo no cérebro: a sobrevivência”.

O professor Christian Dunker posa para foto. (Divulgação)

Christian Dunker assinala que existem vários tipos de montagens psicológico-sociais que conduzem alguém ao comportamento autoritário e que, é importante frisar, nem todas elas conferem com o protótipo do fascista. Segundo o professor, algumas pesquisas descrevem as qualidades pessoais mais comuns desse tipo de liderança:
a. Orienta seu discurso para a oposição amigos e inimigos, com ênfase direta ou indireta na eliminação dos inimigos ou oponentes como estratégia básica para a resolução dos problemas.
b. Transforma seus inimigos em uma lista heterogênea histórica e temporal, ampliando cada vez mais as razões e deslocando os argumentos de modo a sempre confirmar a consistência e unidade do inimigo, como fonte e origem da união do grupo de base.
c. Apresentar-se como uma pessoa comum, que poderia ser qualquer um, um “pequeno grande homem”, de tal maneira que muitos podem se reconhecer nele. Quebrar protocolos, usar palavras de baixo calão, ameaçar ou intimidar os outros são parte desta estratégia para produzir “autenticidade”.
d. Simplificar situações complexas a fim de que a massa possa compreender sem grande esforço intelectual, de maneira a acreditar na sua interpretação como imunidade contra críticas e detalhamentos.
e. Colocar-se apenas como mensageiro de uma causa maior, fazendo prosperar uma espécie de personalismo com um antídoto envolvido em si mesmo.
f. Crítica e ridicularização de intelectuais, de artistas, da imprensa e de todas as instâncias que fazem a mediação da palavra no espaço público. Desdém para com a cultura e com a ciência que não confirmem os valores do grupo de pertinência.
g. Valorização do medo como afeto político hegemônico, por meio da construção da imagem de um mundo excessivamente violento, que com violência deve ser combatido.

“Para reconhecer um candidato potencialmente autoritário basta ver como ele baseia seu discurso no retorno à família”

Ambos os profissionais consultados confirmam que o uso da teologia política é de fato uma característica dos populismos de direita e de esquerda. De acordo com Dunker, “isso acontece porque as narrativas teológicas, como as da Bíblia, substituem a laicidade do Estado, do ensino e do interesse público no espaço público, com os seus conflitos por um estado anterior de harmonia, onde o conflito é sentido como uma ameaça a estes valores. Isso acontece também porque a maior parte das religiões remonta ao período pré-moderno, momento no qual a noção de espaço público e de Estado laico ainda não havia se consolidado tal qual a conhecemos hoje”.
Assim, fica fácil o regresso a um tempo de menor consciência democrática, quando certas liberdades e direitos individuais sequer existiam. “Este raciocínio pode aparecer deslocado em todas as estratégias que tentam substituir a entrada no espaço público pela reinstalação dos poderes tais como eles se exercem no espaço privado, vale dizer, na família. Para reconhecer um candidato potencialmente autoritário basta ver como ele baseia seu discurso no retorno à família, como ele faz referência à sua honestidade apelando para os filhos, como ele se dá o respeito porque ele deve obediência e respeito aos seus pais e filhos”, conclui Christian Ingo Lenz Dunker.

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