Por Eliane Brum, do El País
Demorei a entender que a violência de ter um corpo sempre em risco não era um dado a mais na trajetória de uma vida. Não era um trauma ou uma história triste. Ou vários traumas ou várias histórias tristes. A violência é tão constituinte do que é ser uma mulher como nossos ossos, órgãos, sangue. A violência é estrutural no nosso ser e estar no mundo. Compreendemos o que somos pela ameaça aos nossos corpos.

Se cada uma de nós pensar com coragem, descobrimos que a maioria de nossas decisões passa por onde colocar nosso corpo. Como colocar nosso corpo. Como nosso corpo é visto. E, principalmente, como proteger nosso corpo. Dos olhos, das mãos, das facas, dos pintos que não autorizamos a entrar.
Ser mulher é ser uma Palestina.
Se o olhar do outro é o que nos funda, nos descobrimos mulher antes de nos descobrirmos mulher, antes mesmo da podermos pronunciar a palavra mulher, pelo olhar que nos invade. Não o que nos ama, mas o que nos julga. Não o que nos reconhece, mas o que nos converte em objeto. Não o que pede permissão, mas o que viola. Se o olhar do outro nos diz quem somos, mesmo antes de compreender a palavra medo nós já tememos.
Ser mulher é ser uma ilha do Xingu arrebentada por Belo Monte.
É com esse corpo que pode ser violado que andamos pelas ruas nos defendendo dos olhares e das mãos. Que entramos no ônibus e no metrô nos defendendo dos olhares e das mãos, às vezes dos pintos. Que tememos os professores homens, os médicos homens, os chefes homens. Que tememos às vezes os tios e os primos. Que tememos os padrastos e às vezes o pai. Que tememos o homem que vende balas. Que tememos o homem que senta ao lado no cinema. Que tememos os colegas de escola e mais tarde os de faculdade. Que tememos os colegas do trabalho. Que tememos. E tememos.
Ser mulher é ser o povoado de Mariana que virou lama.
Nós que fechamos as pernas quando sentamos porque nossa vagina deve ser escondida, mesmo que ela seja um mistério muito mais para dentro do que para fora. Um maravilhoso mistério que somos ensinadas a silenciar, justamente nós que temos grandes e pequenos lábios e uma língua que fica ereta no meio do nosso sexo somos as caladas. E caladas ficamos quando nossas vaginas e nossos cus e nossas bocas são violadas.
Ser mulher é ser palavra que não pode ser pronunciada, é ser uma pintura censurada no Facebook.
Porque nos ensinarem que é nossa responsabilidade saber onde e como botar o nosso corpo, saber com que roupa vestir o nosso corpo, porque nos ensinaram que é nossa responsabilidade escapar dos pintos e das mãos e das facas. E porque é nossa responsabilidade escapar da violência do macho que não pode resistir à sua natureza de invadir, perfurar e atravessar, somos culpadas. Por ter escolhido o lugar errado, a hora errada, a roupa errada, o cara errado. Somos culpadas de sangrar e de doer e de querer morrer para não ser mais invadida, atravessada, perfurada.
Ser mulher é ser estuprada por 30 homens no Rio de Janeiro. Ser mulher é também ser estuprada 30 vezes ao longo de uma vida pelo marido ou pelo namorado ou por um homem numa festa.
Se converter de menina em mulher é uma história que pode ser narrada pelas mãos sobre nossas bucetas, pelos pintos que nos mostram nas ruas (ou em casa), pelas piadas nojentas na escola e no trabalho, pelas frases jogadas contra nossos corpos que tentam passar, pelas palavras vadia, puta, vagabunda. Vadia, puta, vagabunda. Vadia, puta, vagabunda. Mil vezes. Vadia, puta, vagabunda. Se converter de menina em mulher é um conto contado pelo medo, medo, medo. É saber que o peito que cresce será violado mesmo antes que ele termine de crescer e que a vagina que amadurece será tocada sem permissão. E olhada. Olhada sem amor.
Ser mulher é ter a cabeça arrebentada a balas por ousar desafiar o poder. É ser Marielle Franco, Dorothy Stang, Luana.
Quando não é o nosso corpo de carne que abusam, eles cortam e mutilam a nossa expressão com palavras que são navalhas afiadas. Eles cortam e mutilam as nossas palavras escritas com suas canetas e seus dedos. Eles cortam e mutilam nossas performances com seus gritos de “gostosa”. Eles chamam nossa literatura e nossa arte de feminina porque só podemos existir em caixas rotuladas. Eles interrompem nossas falas, eles completam nossas frases porque não somos capazes de chegar ao fim sozinhas. E quando reagimos eles nos chamam de vadias e de loucas. De putas e de histéricas. De mal comidas porque acreditam que seu pinto é o que nos falta.
Ser mulher é ser mutilada também sem sangue e sem marca. Ser mulher é ser palavra ausente, letra deletada com um clique no teclado.
Dizem que nem os criminosos perdoam o estupro, e por isso estupram os estupradores, como se alguma justiça houvesse em botar o pinto no cu de quem não quer ser comido, perpetrando mais uma violência e gozando com ela. Mas muitos desses homens que supostamente não perdoam o estupro violam suas esposas na cama, batem nas suas filhas, controlam as vaginas que consideram suas com mil olhos. E quando são presos delegam essa tarefa para quem está fora enquanto suas mães passaram décadas tendo a vagina e o ânus revirados na porta das prisões.
Ser mulher é ficar azul com choques elétricos nos seios e na vagina por ordem de Carlos Alberto Brilhante Ustra e depois testemunhar o coronel chamar os seus filhos de 4 e 5 anos para ver você nua, urinada e vomitada. Ser mulher é ser Amelinha Teles.
Nesse Brasil de sangue gerações de homens acreditaram virar homens violentando as empregadas domésticas como seus pais e avôs também o faziam. E viram. E fazem. Mulheres aterrorizadas, a maioria delas negras, sem nenhuma chance de denunciar ou mesmo de gritar. Mulheres submetidas à lógica de que sua carne é para uso (e abuso). Essa modalidade da Casa Grande e Senzala que nunca foi considerada estupro, porque a empregada doméstica era uma escrava que jamais poderia ter alforria.
Ser mulher é ter seu estupro definido como “traço cultural”. É gritar com o lençol dentro da boca no cubículo que chamam de quarto de empregada.
Por que #EleNão?
Porque queremos que a violência deixe de determinar a experiência do que é ser uma mulher. Porque queremos que a violência abandone nossos ossos.
Porque não queremos um presidente que diga: “Não vou estuprar você porque você é muito feia”. Porque não queremos um presidente que diga que seus filhos não namoram mulheres negras porque foram “muito bem educados”. Porque não queremos um presidente que defenda que as mulheres devem ganhar menos porque engravidam. Porque não queremos um presidente que prefere que o filho morra num acidente de trânsito do que seja homossexual. Porque não queremos um presidente que diga que os negros dos quilombos não servem nem para “procriador”. Porque não queremos um presidente que defenda a tortura. Porque não queremos um presidente que tenha Carlos Alberto Brilhante Ustra como herói. Porque não queremos um presidente que defenda que a solução para a violência que ele e os seus ajudaram a produzir é armar a população. Porque não queremos um presidente que defenda o ódio.
Por que #EleNão?
Porque não queremos que nossas netas vivam num país governado por um homem que faz sinal de atirar com as mãos. Nem queremos que vivam sob o governo de um homem que diz que elas nasceram de uma “fraquejada”.
Porque não queremos que as mulheres que nascem agora tenham que viver com medo como nós e nossas filhas vivemos. Dos homens que usam pintos como armas e armas como pintos.
Porque não queremos que as mulheres sigam sendo vítimas. E votar nele é apertar a tecla de vítima mais uma vez.
Porque ser mulher é também ser um corpo insurrecto. É ser um corpo que luta contra a opressão há milênios. Mesmo com o risco de ser destruído pelo fogo dos inquisidores.
Porque ser mulher é ter como passado grandes mulheres que lutaram pela liberdade e nos trouxeram até aqui fazendo do nosso corpo rebelião.
Porque ser mulher hoje é ter feito a Marcha das Vadias, é ter gritado Nosso Corpo, Nossas Regras nas ruas, é seguir afirmando #MariellePresente. É ter feito #PrimeiroAssedio. É ser #MeToo. Ser mulher é dizer que Luto é Verbo.
Lutaremos.
Porque essa longa noite precisa terminar. E somos nós que precisamos barrar a violência colocando nossos corpos nas ruas. Nós, unidas com os homens que também inventam um corpo que não se constitui pelo ato de violentar. Corpos desejantes que se unem na luta também para recuperar a possibilidade de estar juntos sem violência.
O Brasil tem que parar de construir ruínas, o Brasil não pode mais ser um corpo em ruínas.
É com corpos que se recusam a ser determinados pelo ato de ser violentada ou pelo ato de violentar que podemos criar um outro jeito de ser e de estar nesse mundo.
Por que #EleNão?
Porque #NósSim.

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