Lançado recentemente pela Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, o Relatório de Insustentabilidade da Vale 2015 rebate, com denúncias e dados, o conteúdo informado, todo ano, oficialmente pela empresa no que diz respeito à sustentabilidade. Para os movimentos sociais, a Vale S. A. é símbolo de um período que sai caro para a população brasileira, demarcando uma série de privatizações que hoje ganham outros formatos, mas que igualmente afetam direta ou indiretamente os serviços básicos que um povo precisa ter.

Com o lançamento do relatório, rememoramos o Plebiscito Popular “A Vale é Nossa”, que em 2007 questionava a privatização da estatal e chamava o povo para um debate até então restrito, popularizava a discussão do público-privado, reforçava o direito aos serviços básicos em detrimento do que era ofertado ao capital.

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Passados quase 18 anos, a verdade é que a privatização da Vale ainda reverbera. Não deixando cair no esquecimento que houve – e há muita luta – contra formas desenvolvimentistas, contra modelos impostos sem a consulta do povo, dívidas. Trata-se de uma luta questionadora sobre o papel do Estado.

O Jubileu Sul Brasil conversou com Dirlene Marques, economista e coordenadora da Rede Feminista de Saúde, sobre o plebiscito e a privatização da Vale.

Para ler o Relatório de Insustentabilidade da Vale: Relatório_pdf

Jubileu Sul Brasil – O Plebiscito da Vale acrescentou valor importante à cidadania brasileira, expôs e popularizou um debate até então restrito, como é o caso da economia, nomes de grandes empresas estavam em pauta…O que podemos tirar de toda essa experiência?

Dirlene Marques – O que chamamos de plebiscito da Vale era muito mais amplo. O plebiscito tinha quatro perguntas que questionavam as privatizações em suas diferentes faces: uma grande empresa produtiva (a Vale do Rio Doce), direito da pessoa humana (água e energia), direito dos trabalhadores (à previdência social) e retoma a discussão sobre as dívidas do Estado. Incorporávamos lutas importantes e abrimos espaço para uma discussão mais ampla com a sociedade: o modelo econômico e social assumido pelo governo do PT. Estas questões colocavam em cheque o Governo Lula e a sua lógica privatista mantida ao implementar a Reforma da Previdência, as Parcerias Público-Privadas – permitindo a privatização de qualquer setor econômico –, as vendas dos poços de petróleo, das jazidas minerais e das águas como o projeto de Transposição do São Francisco.

Se todas estas formas de privatizações eram lastimáveis, não podíamos esquecer, além disto, que o governo ao assumir Superávit Primário, ou seja, a reserva de recursos para o pagamento da dívida, estava priorizando o capital em detrimento do provimento de serviços básicos à população como o da educação, saúde e previdência pública e com isto assistimos a uma expansão sem precedentes da iniciativa privada nestes setores.

E, procuramos deixar claro que o governo do PT, era o projeto neoliberal dos organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM) que, após sua implantação no mundo subdesenvolvido, foi reavaliado por estes organismos e feito os ajustes necessários. Eles perceberam claramente que o aumento da pobreza, da concentração de renda, da exclusão social, da violência que estava ocorrendo, poderia ameaçar as bases do capitalismo. Diante disto, ajustaram o modelo. Para que o Estado fosse forte para garantir a lucratividade ele precisava também ser forte para garantir as politicas sociais. Propunham, portanto, a ampliação de sua atuação com programas assistenciais focalizados nas áreas de maior pobreza e de pressão social. O “Bolsa Família” e o “Pró-Uni”, sendo este um projeto que concede generosas isenções fiscais para que as faculdades privadas disponibilizem uma certa quantidade de vagas com bolsas de estudo, são dois exemplos bem sucedidos de atendimento a focos de problemas – entre os mais pobres e os jovens. Não se altera o sistema, que continua gerando miséria, desemprego, violência, mas procura atender focos dos problemas para garantir a continuidade do modelo.

Era isto que denunciávamos com o Plebiscito: modelo centrado na competitividade e no consumo, trazendo uma total deterioração da qualidade de vida urbana e destruindo o meio ambiente e as populações tradicionais. As manifestações de 2013 trouxeram à tona toda esta deterioração.

JSB – Passados quase oito anos desde o plebiscito contra a privatização da Vale do Rio Doce o que se pode avaliar ao longo desse período de privatização da estatal?

Dirlene Marques – Não é possível avaliar o desempenho de uma empresa que foi privatizada com a lógica se ela não fosse privatizada. É comparar algo atual com algo que não existe. O que é amplamente divulgado pela mídia e absorvido pelo senso comum é que a privatização levou a Vale a crescer de forma espetacular.

Podemos levantar vários argumentos para contra-arrestar esta afirmação.

Podemos dizer que a Vale, antes de sua privatização em 1995, já era uma empresa internacional, a maior exportadora do país e a maior exportadora mundial de minério de ferro. O seu valor era incalculável, não só pelas imensas riquezas minerais como ferro, bauxita, nióbio, alumínio, cobre, carvão, manganês, ouro, urânio, mas também pela estrutura logística englobando 9 mil quilômetros de malha ferroviária, portos, usinas e terminais marítimos; bem como pelo conhecimento tecnológico de seus funcionários, desenvolvido ao longo dos anos. Ela era assim, uma ferramenta fundamental para o planejamento estratégico do Brasil.

Podemos também mostrar que neste período houve um crescimento da procura internacional do minério de ferro, principal produto da Vale, cujo preço sobe a patamares fantástico (120/ton.), ocasionada pelo aumento da procura internacional, em especial o crescimento chinês. Quando a China reduz seu crescimento de 11% para 7%, desaba a procura do minério, faz cair o seu preço, a rentabilidade da empresa. Tal como ocorre com todas as empresas pública ou privada, que vendem produtos primários, como o petróleo. Portanto, ela cresce diante de uma conjuntura favorável e cai com a conjuntura desfavorável.  Nada tem a ver com ser pública ou privada.

E, podemos também questionar o absurdo que foi esta privatização. Além da importância estratégica de uma empresa como esta, seu leilão foi todo irregular: preço subestimado, a empresa que fez a avaliação participa do leilão, consideração de quantidades muito menores de várias reservas de minérios e outros sem serem avaliados, vender reservas de urânio e outros minérios na fronteira, por exemplo, precisa ser aprovado pelo Congresso.

O mais importante de tudo isto é que passa-se a usar uma empresa – que já era grande, rica, e rentável – como a Vale para comparar com os outros serviços oferecidos pelo estado – saúde e educação que são serviços de baixa qualidade – para mostrar que o privado é melhor. Junta-se aí, o argumento de que isto ocorre por ser a empresa cabide de emprego e pagar muito bem. Como também a massa da população trabalhadora, recebe baixos salários, estimula sua indignação para com os trabalhadores da Vale, que tinham salários bem melhores.

Mas, o mais importante de nosso questionamento é a logica de privilegiar o interesse privado em contraposição aos interesses da maioria da população. E a logica de entregar um patrimônio construído pelo povo brasileiro à iniciativa privada nacional e internacional. E, mais ainda, financiada pelo governo federal, através do BNDES, participações dos fundos de previdência de suas estatais.

JSB – Iniciativas como essas, do plebiscito, contribuem para confrontar o senso comum de quê o que é particular e privado é melhor do que é público…

Dirlene Marques – Não tenho dúvidas de que movimentos como este são fundamentais. É uma forma de abrir espaços na grande mídia para colocar esta discussão. É o espaço para procurar falar com o grande público, procurando reconquistar o coração e a mente do povo brasileiro para uma visão mais coletiva, mais da solidariedade. É procurar disputar a hegemonia com a burguesia, de que o público deve estar a serviço do povo. Sabemos muito bem das dificuldades que isto representa, considerando que os serviços públicos, de um modo geral, são de péssima qualidade. Tínhamos de mostrar que, nossa luta era para exigir qualidade nos serviços do governo e não entregar para a iniciativa privada, cujo objetivo é o lucro e não o atendimento dos interesses da população e/ou qualidade de seu atendimento.

É claro que a luta dos movimentos sociais inibiram, dificultaram o crescimento do pensamento privatista. Mas, os governos petistas assumiram uma forma diferente de privatização. Não se dá mais com a venda pura e simples, como se fez com as empresas produtivas. Agora, se faz através de concessões, como é o caso das estradas, dos aeroportos, dos portos. Ou através das parcerias público-privadas (PPPs). Até porque as empresas têm de ter garantido o seu lucro, que vai ser garantido pelo governo. É assim que vai ocorrer com as PPPs, onde o governo fica com o ônus e o capital fica com o bônus.

Por Rogéria Araujo, Rede Jubileu Sul Brasil.

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