Por Plínio de Arruda Sampaio Jr*
A decisão do Partido dos Trabalhadores de sancionar os fundamentos do Plano Real – sacramentada na famigerada Carta aos Brasileiros de 2002 – comprometeu os mandatos de Lula e Dilma com a inserção subalterna na ordem global e a reprodução das mazelas do capitalismo dependente. Ao renunciar a qualquer iniciativa que pudesse desafiar o capital internacional e ameaçar os privilégios aberrantes da plutocracia brasileira, Lula e Dilma tornaram-se instrumentos do status quo, definitivamente afastados do campo político dos que se batem contra a exploração dos trabalhadores.
Mantendo a economia brasileira exposta à fúria da concorrência global e aos vendavais dos fluxos especulativos de capitais internacionais, os governos petistas revigoraram o padrão de acumulação de riqueza baseado na integração subalterna aos circuitos mercantis e financeiros que impulsionam a expansão do mercado mundial e a reprodução ampliada de capital em escala global. A lógica dos grandes negócios aprofundou a desarticulação do sistema econômico nacional. A desindustrialização e a perda de controle sobre os centros internos de decisão, patentes no desmonte da indústria de transformação e na absoluta falta de controle sobre os fluxos de capitais internacionais, comprometeram a capacidade de o Estado brasileiro defender a economia popular e preservar os interesses estratégicos da Nação.
Colocando-se no espectro esquerdo do status quo, os governos do PT desdobraram-se para conciliar as exigências do grande capital com as medidas assistencialistas e compensatórias destinadas a mitigar o sofrimento do povo e preservar a “paz social”. Sem romper com os parâmetros da ordem, o raio de manobra da política econômica ficou limitado à opção pelo mal menor:
a) o estímulo ao crescimento econômico, dentro das possibilidades sobredeterminadas pela conjuntura internacional;
b) a redução da concentração pessoal de renda, dentro de um padrão de acumulação que não pode abrir mão da superexploração do trabalho;
c) a maior intervenção do Estado na economia, dentro das restritas possibilidades de um aparelho de Estado intrinsecamente neoliberal e patrimonialista que submete o setor público aos imperativos dos grandes e pequenos negócios; e
d) a elevação do gasto público, dentro da situação de penúria permanente imposta pelo garrote a serviço do capital rentista – institucionalizado na Lei de Responsabilidade Fiscal – que transforma o investimento e a política social em variável de ajuste das contas públicas.
Enquanto a economia cresceu, as contradições de uma modernização mimética que reproduz o subdesenvolvimento permaneceram em estado latente, e o caráter antinacional e antissocial da administração de Lula e Dilma ficou camuflado. A sensação de melhoria nas condições de vida gerada pela ampliação do emprego e pelo acesso da população carente às franjas inferiores do mercado de bens de consumo conspícuos, educação superior e habitação alimentou o sentimento de que os problemas fundamentais do povo estavam sendo paulatinamente incorporados às prioridades do Estado.
O fim do efêmero e instável espasmo de crescimento que impulsionou a economia brasileira entre 2004 e 2011, determinado fundamentalmente pelo ciclo especulativo que elevou os preços das commodities e incentivou um gigantesco afluxo de capitais para os chamados mercados emergentes, revelaria as frágeis bases do “melhorismo” petista. A inflexão na conjuntura internacional deixou o país à deriva. Do dia para a noite, o sentimento de que o Brasil havia encontrado o seu futuro deu lugar à apreensão em relação à impotência para enfrentar a crise.
As incertezas em relação às novas frentes de expansão da economia brasileira deprimiram as expectativas dos empresários. O sobreendividamento comprometeu a capacidade de consumo das famílias. A Lei de Responsabilidade Fiscal vetou qualquer possibilidade de utilizar o gasto público como política anticíclica. A incapacidade de competir com os produtos importados acentuou as tendências recessivas.
A expectativa de elevação da taxa de juros norte-americana, provocada pelo anúncio do fim da política de estímulo monetário, colocou a ameaça estrangulamento cambial no horizonte do Brasil. Preso à armadilha da especulação financeira em escala global, o governo Dilma foi obrigado a elevar os juros a níveis estratosféricos e queimar reservas internacionais a fim de dissuadir a fuga de capital e evitar uma desvalorização selvagem da moeda.
O desperdício de recursos públicos em projetos faraônicos e anti-sociais para beneficiar empreiteiras, mineradoras e agronegócio, os gastos monumentais com a Copa do Mundo e as Olimpíadas, que turbinaram a especulação imobiliária nas grandes cidades, a escalada da corrupção para financiar os partidos da base aliada, que tem nas operações Lava Jato e Zelote seus exemplos mais escandalosos, e, sobretudo, as despesas amazônicas com pagamento de juros e amortização da dívida pública, que consumiram aproximadamente 45% de todo o orçamento federal, impediram que o dinheiro público fosse utilizado para desenvolver a infra-estrutura econômica e enfrentar os graves problemas sociais do país.
A subordinação da administração da dívida pública à política de metas inflacionárias criou uma armadilha institucional que deixa o Brasil completamente refém dos humores do mercado. Ao vincular o aumento de reservas internacionais à expansão de títulos públicos, o passivo externo e a dívida pública entrelaçaram-se inextrincavelmente, aprofundando a vulnerabilidade da economia brasileira às vicissitudes do capital internacional. Nesse contexto, a entrada maciça de capitais estrangeiros, incentivados pela especulação em “carry trade”, funcionaria como uma bomba relógio de grande impacto destrutivo, pois, quando os fluxos de capitais invertessem o caminho, realizando os gigantescos lucros obtidos na ciranda financeira, o Brasil ficaria sujeito a uma crise cataclísmica, combinando estrangulamento cambial draconiano e desequilíbrio agudo das finanças públicas. O adiamento da elevação dos juros dos Estados Unidos protelou o estouro da boiada, mas não desanuviou a percepção generalizada de que a tormenta se aproxima.
Entre 2012 e 2014, tudo que parecia sólido começou a se desmanchar. A euforia “neodesenvolvimentista” de que o Brasil havia superado o subdesenvolvimento e estaria em vias de se tornar uma potência emergente foi substituída pela percepção de que a sociedade brasileira voltaria a viver sob a ameaça de descontrole inflacionário, estagnação econômica, desemprego aberto, estrangulamento cambial e desorganização das finanças públicas. Sem ter resolvido nenhum dos problemas fundamentais do povo, os doze anos de “melhorismo” petista terminaram sob o espectro de uma nova ofensiva sobre o trabalho e as políticas públicas.
Ao referendar a agenda do grande capital, sancionando o consenso conservador de que a crise deveria ser enfrentada com um convencional ajuste neoliberal, Dilma comprometeu seu segundo mandato com políticas aberta e inequivocamente regressivas e antinacionais. A expectativa de que seria possível combinar um “ajuste” preventivo com a preservação da “paz social” transformou a candidata do PT na campeã inconteste de arrecadação de dinheiro junto às grandes empresas. A demagogia do “coração valente” como símbolo de um compromisso histórico com os valores de esquerda era puro engodo.
O receituário ortodoxo é conhecido e seus efeitos também. Para viabilizar a transferência de recursos ao exterior decorrente do aumento dos compromissos relacionados com a expansão do passivo externo, o Brasil terá aumentar os superávits comerciais. A fim de honrar as obrigações com os credores do Estado, o esforço de geração de superávits fiscais terá de ser redobrado. Para saciar a sanha dos capitais em busca de grandes negócios, o Estado terá de promover novas rodadas de privatização e desregulamentação da economia. A fim de elevar a rentabilidade dos capitais e a competitividade internacional, os salários serão rebaixados, as leis trabalhistas “flexibilizadas”, a política social sacrificada e a tributação das empresas reduzida. Em todas as frentes, o “ajuste” supõe a socialização do ônus da crise, penalizando os segmentos mais débeis da economia e da sociedade; o aprofundamento do processo de liberalização, favorecendo formas parasitárias e predatórias de acumulação de riqueza; e o rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores.
Ao subordinar as condições de vida dos trabalhadores às exigências do capital em tempos de crise, o governo do PT tirou a máscara e revelou seu verdadeiro papel como agente dissimulado da burguesia. A imagem de políticos corruptos em situação vexatória por terem urdido tenebrosas transações para beneficiar empresas poderosíssimas, posando – de punhos cerrados – como heróis mal-compreendidos do povo brasileiro, é a metáfora perfeita do novo PT. A nomeação de Levy para cuidar dos grandes negócios e a indicação de Temer para arbitrar a guerra entre Eduardo Cunha e Renan Calheiros pelo controle dos pequenos negócios colocaram à nu, de uma vez por todas, a impostura de Dilma e Lula como defensores dos pobres e oprimidos.
*Professor do Instituto de Economia da UNICAMP e membro do Conselho Editorial do Correio da Cidadania. Abril de 2015.

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