Por Plínio de Arruda Sampaio Jr.*
A maxidesvalorização do Real expõe a elevada vulnerabilidade da economia brasileira aos humores do capital internacional. Antes de representar uma mudança de preço relativo que abre espaço para a recomposição do sistema econômico nacional, abalado pela crise terminal da industrialização, a depreciação do Real anuncia a possibilidade de uma grave crise de estrangulamento cambial e, como consequência, o aprofundamento do processo de reversão neocolonial que solapa a capacidade de o Estado defender a economia popular e promover o desenvolvimento nacional. 1
A desvalorização da taxa nominal de câmbio da ordem de 80% desde agosto de 2014 e 30% desde julho de 2015 é parte do processo de reacomodação da hierarquia internacional das moedas provocado pelo fortalecimento do dólar. Condicionada pela expectativa de inflexão na política de “facilitação quantitativa” do Federal Reserve, a depreciação das moedas em relação ao dólar foi reforçada pelo enfraquecimento do renminbi após a eclosão da crise financeira chinesa. As economias da periferia com elevada dependência da exportação de commodities foram as mais afetadas.2
A queda mais intensa do Real deve ser atribuída à situação cambial particularmente delicada em que se encontra a economia brasileira.3 A inflexão dos superávits comerciais e a escalada das transferências de recursos ao exterior para saldar obrigações decorrentes da crescente presença do capital internacional – seja na forma de transferências de juros, remessas de lucros e royalties, seja no acúmulo de despesas com a amortização da dívida externa – levaram a uma crescente ampliação do hiato de recursos necessários para fechar o balanço de pagamentos.
A dimensão do problema pode ser aquilatada quando se leva em consideração que entre 2006 e 2014: a) o saldo comercial sofreu uma contração de mais de US$ 50 bilhões (passado de um superávit de US$ 46,5 bilhões para um déficit US$ 3,9 bilhões); b) o resultado do balanço de pagamentos em conta corrente sofreu uma deterioração de US$ 104 bilhões (passando de um saldo positivo de US$ 13 bilhões para um déficit de 91 bilhões); e c) as despesas anuais com amortizações referentes à dívida externa total aumentaram em US$ 102 bilhões (passando de US$ 53 para US$ US$$ 155 bilhões).
À necessidade de crescentes fluxos de recursos externos para cobrir obrigações no exterior, soma-se a extraordinária vulnerabilidade da economia brasileira a movimentos de fuga de capital.4 Ao sancionar a enxurrada de capitais que entravam no país para aproveitar as fabulosas oportunidades de lucro fácil abertas pela especulação em carry trade e pelo crescimento impulsionado pelo boom das commodities, o ciclo “neodesenvolvimentista” acarretou uma expansão exponencial do estoque de ativos de estrangeiros no país. A contrapartida contábil da temerária decisão de surfar na bolha financeira internacional foi o aumento do passivo externo bruto em 4,4 vezes entre dezembro de 2002 e junho de 2015. O potencial desestabilizador que isso representa fica patente quando se constata que a magnitude do passivo externo financeiro líquido (que considera apenas os ativos externos de alta liquidez e desconta o valor das reservas) atingiu US$ 632 bilhões em junho de 2015.5
Os problemas nas contas externas eram previsíveis. A vulnerabilidade externa é uma característica estrutural do padrão de acumulação liberal periférico. A especialização regressiva e o aprofundamento da internacionalização reforçam a tendência a desequilíbrios externos típica do subdesenvolvimento. A integração no sistema financeiro internacional leva ao paroxismo a instabilidade gerada pelos vais e vens dos fluxos de capitais também típica do subdesenvolvimento.
Posta em perspectiva histórica, a depreciação do Real, que ganha ímpeto desde meados de 2011, anuncia o inicio de uma nova fase do círculo vicioso que faz as economias enredadas no padrão de acumulação liberal periférico alternar efêmeros ciclos de bonança com longos períodos de crise e estagnação. Desde o início do processo de liberalização, que remonta ao programa de ajuste estrutural imposto pelo FMI no início dos anos 1980s, o Brasil viveu apenas doze anos de prosperidade, divididos em dois períodos de expansão da renda per capita (1994/1997 e 2004/2011), e vinte e três anos de estagnação, repartidos em três períodos (1981/1993, 1998/2003 e o que se iniciou em 2012 e não tem previsão de fim).
Os momentos de expansão e estagnação condicionam-se reciprocamente e são determinados em última instância pela conjuntura internacional. Nos contextos favoráveis em que há abundância de recursos externos e valorização dos termos de troca, o crescimento da economia é aproveitado para impulsionar novas rodadas de modernização dos padrões de consumo e vem acompanhado de valorização da taxa de câmbio, reversão dos saldos comerciais positivos e acúmulo de déficits em conta corrente no balanço de pagamentos. Nas conjunturas desfavoráveis, a economia é coagida a “ajustar-se” às novas circunstâncias. A fim de viabilizar gigantescas transferências de recursos ao exterior, reais e financeiros, o país é forçado a contrair o mercado interno, desvalorizar o câmbio, gerar mega-superávits comerciais e promover novas rodadas de privatização do patrimônio público e desnacionalização da economia.
Ainda que a desvalorização da Real possa dar algum alento a setores industriais que operam em mercados onde a proximidade do consumidor constitui importante vantagem competitiva, é uma ilusão imaginar que o encarecimento das importações possa interromper o movimento de desindustrialização. As forças responsáveis pelo desmantelamento do sistema industrial – a coluna vertebral do sistema econômico nacional – são estruturais. Elas operam tanto nos momentos de câmbio valorizado, quando a concorrência de importados inviabiliza a produção nacional, como nos momentos de desvalorização cambial, quando o aumento da dívida em moeda internacional fragiliza a empresa nacional, deixando-a a mercê de operações de açambarcamento do capital internacional; e a escassez de divisas submete o país aos imperativos do ajuste liberal, deprimindo o mercado interno e reforçando a especialização da economia na divisão internacional do trabalho.
As circunstâncias que permitiram a industrialização por substituição de importações entre 1930 e 1980 não estão mais presentes. Na era global, as exigências e requisitos da industrialização capitalista tornaram-se inconciliáveis com a industrialização baseada na proteção do mercado interno, defesa da produção nacional e forte intervenção do Estado na economia.
O desenvolvimento de cadeias de valor é incompatível com a industrialização ancorada num regime central de acumulação, que se organiza em torno de um sistema industrial articulado em torno do setor de bens de produção. O salto de qualidade nas escalas mínimas de produção inviabiliza a circunscrição do horizonte de produção aos espaços econômicos nacionais. A crescente integração do mercado mundial, que induz à progressiva liberalização comercial, inviabiliza a cristalização do mercado interno como eixo dinâmico da economia nacional. A progressiva mobilidade espacial dos capitais, sancionada pela liberalização financeira, solapa a capacidade de o Estado nacional controlar os centros internos de decisão, inviabilizando políticas voltadas para o desenvolvimento nacional. Por fim, a mudança de qualidade na estrutura técnica e financeira do capital aumenta a fragilidade relativa da base empresarial nacional e elimina qualquer possibilidade de uma reação nacionalista aos desideratos dos centros imperiais.
Nesse contexto, o raio de manobra das autoridades econômicas para proteger a economia nacional de ataques especulativos contra a moeda é mínimo, reduzindo-se basicamente à elevação dos juros da dívida pública para compensar o risco soberano e à queima de reservas para financiar os desequilíbrios externos, na esperança de que a tormenta provocada pela inflexão dos fluxos de capitais seja passageira.
O resgate do destino nacional requer uma profunda ruptura com os interesses econômicos e sociais – internos e externos – que sustentam o Plano Real. Enquanto a sociedade permanecer submetida aos imperativos do grande capital, sujeita à disciplina implacável das agências de risco e à tutela draconiana dos organismos internacionais, é impossível imaginar uma política econômica com um mínimo de conteúdo nacional e democrático.
O primeiro passo é centralizar o câmbio e estabelecer um rigoroso controle sobre o movimento de capitais a fim de evitar que as divisas sejam dilapidadas no financiamento da fuga de capitais. O segundo é romper com o padrão de acumulação baseado na cópia dos estilos de vida das economias centrais e organizar a economia e a sociedade em função dos interesses estratégicos do conjunto da população. Uma ruptura dessa envergadura é evidentemente impossível sem uma mudança prévia nas bases sociais e políticas do Estado brasileiro.
1. O risco de que o fim da política monetária expansionista dos Estados Unidos provoque crises de dívida externa é objeto da publicação do FMI, “Global Financial Stability Report – Vulnerabilities, Legacies and Policy Challenges – Risks Rotating to Emerging Markets” de outubro, 2015.

2. O efeito da valorização do dólar sobre as economias que fazem parte do elo fraco do sistema capitalista mundial é discutido em IMF, “World Economic Outlook”, de outubro de 2015, especialmente em seu capítulo 3.

3. Ver IMF, World Economic Outlook, october, 2015, Gráfico 1.13, p. 21.

*Professor do Instituto de Economia da Unicamp – IE/UNICAMP. Artigo preparado para o Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro em outubro de 2015.

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