Por Jairo Salvador*
Uma das necessidades mais básicas de qualquer ser humano é ter um local onde se sinta seguro, onde possa estabelecer um espaço de privacidade, desenvolver relações afetivas e familiares, experimentar momentos de descanso, de conforto e de acolhimento.
Um espaço de paz espiritual, onde possa organizar sua vida, alimentar-se, recuperar suas forças e ter um ponto de referência espacial e emocional, que o situe no mundo e o integre à humanidade.
Este espaço não se resume somente a quatro paredes, um quintal ou um terreiro. Ele envolve outros elementos que, embora não visíveis, são tão importantes quanto a construção.
Estamos falando do Direito à Moradia.
Trata-se de direito humano fundamental a possuir um espaço físico delimitado, protegido contra remoções violentas, dotado de condições de segurança, salubridade, conforto e acessibilidade.
Um lugar apto a proporcionar privacidade, segurança, desenvolvimento de relações afetivas e de convivência familiar e comunitária, autodeterminação, repouso e acolhimento de seus habitantes.
Um espaço com acesso aos serviços públicos e à infraestrutura, que satisfaça o mínimo para se viver com dignidade, sendo que dele ninguém pode abrir mão ou renunciar, já que isto implicaria abrir mão de sua própria condição de ser humano.
O respeito ao direito à moradia envolve também o direito à segurança jurídica da posse, ou seja a proteção legal contra despejos forçados, perturbação ou qualquer outra ameaça que venha a ser feita pelo Poder Público ou por particulares.
O Direito à Moradia é, assim, a base de sustentação para o exercício de inúmeros outros direitos, tais como o direito à intimidade, ao sossego, à integridade física e psíquica, à segurança, à propriedade, à liberdade, à saúde, à identidade cultural, a ir, vir e permanecer, ao trabalho, ao lazer, ao descanso, ao meio ambiente saudável, à inviolabilidade do domicílio, entre tantos outros. Portanto, a violação ao direito à moradia, afeta diretamente diversos outros direitos da personalidade humana.
O Direito à moradia é um direito fundamental, reconhecido pela Constituição Federal (art. 6º) e por diversos Tratados de Direito Internacional assinados pelo Brasil, a começar pela Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948 (art. XXV, item 01).
Ele possui dois aspectos complementares: um negativo, que proíbe a implementação de políticas públicas que dificultem ou impossibilitem o exercício de tal direito, e outro, positivo, que obriga o Estado a criar políticas públicas que promovam e protejam o direito à moradia.
No entanto, observa-se, com grande frequência, o direito à moradia sendo reduzido ou equiparado ao conceito de casa própria, como se o direito à moradia somente pudesse ser alcançado com a aquisição da casa própria.
Isto não é verdade, já que a efetivação do direito à moradia pode se dar por outras formas, tais como a concessão de uso e concessão de uso especial para fins de moradia (imóveis públicos), comodatos (contrato de empréstimo) ou locação social (aluguel social).
Da mesma forma, o simples fato de ser dono de um imóvel não garante a concretização do direito à moradia, se não for garantida a segurança, habitabilidade, acesso aos serviços públicos, à infraestrutura e acessibilidade.
O fato é que ainda hoje há quem acredite que a efetivação do direito fundamental à moradia somente será alcançada com a construção e financiamento de unidades habitacionais em quantidade suficiente para atender a todos os que aguardam na fila dos programas habitacionais.
Enquanto essas unidades não forem construídas e entregues, o que se dá de acordo com a agenda política dos detentores do poder, os candidatos à aquisição da casa própria devem aguardar pacientemente na fila, suportando, indefinidamente, a violação aos direitos da personalidade. Em São José dos Campos, existem pessoas há mais de 20 anos na fila da habitação.
Assim, a violação ao direito à moradia de parcela considerável da população brasileira tem sido banalizada e tolerada.
Uma banalização da desassistência, consagrando uma isonomia às avessas, um direito a não ter direitos, na medida em que a existência de uma extensa fila habitacional sempre justifica o não atendimento de todos e de cada um.
Não bastasse a violação permanente pelo Poder Público dos direitos fundamentais sociais da população menos favorecida, de tempos em tempos, deparamo-nos com propostas de remoções compulsórias de populações inteiras, sob o pretexto de melhorar as condições de vida daquela população, como é o caso agora do Jardim Nova Esperança (Comunidade do Banhado).
Assim, o Poder Público, após relegar a comunidade ao completo abandono, desativando equipamentos públicos (Creches, escolas, postos de saúde, FUNDHAS etc.), criminalizando seus moradores e impedindo qualquer melhoria no bairro, surge, agora, como salvador da pátria, pronto para outorgar dignidade aos pobres moradores do Jardim Nova Esperança, oferecendo-lhes auxílio-aluguel ou unidades habitacionais fora do centro da cidade.
As remoções compulsórias de populações de baixa renda e a segregação da pobreza nos desvãos da cidade constituem a faceta mais visível da intolerância com os fracassados da urbe, que passam a ser tratados como simples elementos da paisagem, que devem ser removidos para que o produto “cidade-sem-favelas” torne-se próprio para o consumo dos investidores.
No entanto, a evolução do sistema internacional dos Direitos Humanos, fez avançar a proteção contra remoções compulsórias.
Neste sentido, encontramos no Sistema Americano de Proteção dos Direitos Humanos, um importante instrumento de proteção contra despejos forçados, em especial o “Comentário Geral nº 7 sobre o Direito à Moradia Adequada: Despejos forçados”, elaborado pelo Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, em 16 de maio de 1997.
Os comentários gerais fornecem uma definição clara dos direitos internacionalmente protegidos, sendo obrigatórios para os países que assinaram o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, como o Brasil, que o aprovou pelo Decreto Legislativo n.º 226, de 12.12.1991, tendo-o assinado em 24 de janeiro de 1992, entrando em vigência no país, em 24.2.1992 e promulgado pelo Decreto n.º 591, de 6.7.1992
O Comentário Geral nº 7 considera a prática de despejos forçados uma violação frontal aos Direitos Humanos.
As remoções compulsórias, dentro de um modelo de planejamento autoritário, sem a participação da população, são vistas como efeito colateral inevitável, decorrente da implantação de projetos de desenvolvimento que vão beneficiar toda a cidade, transferindo para os pobres todo o custo do suposto “desenvolvimento” da implantação de projetos que, muitas vezes, beneficiam apenas uns poucos.
Outro argumento sempre utilizado para justificar as remoções forçadas pode ser encontrado no suposto conflito entre o direito à moradia e o direito ao meio ambiente sustentável, que vem sendo utilizado com frequência como pretexto para remover populações pobres.
Trata-se, da denominada “injustiça ambiental”, onde há aplicação desigual das leis ambientais.
Tal fato torna-se evidente no caso do Jardim Nova Esperança, onde o Poder Público pretende remover toda a população, por estar em área de preservação ambiental (APA), enquanto outras habitações, inclusive um condomínio destinado a pessoas de alta renda, situado na mesma APA, pode lá permanecer, sem qualquer importunação.
Tornaram-se comuns as iniciativas de remoções compulsórias de populações inteiras, sob alegação de impossibilidade de regularização fundiária ou, ainda, de existência de risco iminente para a população removida, que, via de regra, desconsideram o direito à cidade, à moradia digna e à preservação do mínimo existencial, endossando e legitimando um modelo excludente e segregador.
O catálogo de violações aos direitos das populações vítimas deste modelo arbitrário de agir envolve a realização de cadastramentos sem informações claras sobre os seus objetivos, criminalização das comunidades, notificações, autuações e demolições sumárias, cooptação de lideranças e deterioração proposital das condições de habitabilidade, tornando insustentável a permanência da população no local.
O fato é que as remoções compulsórias acabam por inverter a ordem urbanística, isentando o Poder Público de promover, naquela comunidade, a necessária regularização fundiária plena.
A regularização fundiária plena implica, entre outras tarefas, a realização de todas as intervenções no meio físico urbano que possam proporcionar condições dignas de existência aos moradores.
A regularização fundiária, portanto, pressupõe a identificação e eliminação de riscos existentes.
A regularização fundiária plena é um dever dos governantes, e não um favor.
Portanto, ao invés de propor a eliminação física da comunidade do Banhado, como a única solução para acabar com as condições subumanas vivenciadas por parcela da população, deveria o Poder Público proporcionar, para quem quiser lá permanecer, as condições dignas de moradia no próprio local ou em local próximo, regularizando o bairro, promovendo medidas de saneamento ambiental e trazendo de volta os equipamentos públicos que de lá retirou ao longo dos anos.
Jairo é defensor público da cidade de São José dos Campos, SP.

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