Foram 2.203 conflitos em 2023, maior número já registrado desde o início do monitoramento, em 1985. O motivo é a falta de políticas de reforma agrária, afirma a Comissão Pastoral da Terra, organização membro do Jubileu Sul Brasil
Por Daniel Camargos – Repórter Brasil
O terceiro governo do presidente Lula (PT) começou com um recorde histórico de violência no campo: média de seis conflitos por dia, a maioria relacionada a disputas por terra. O acirramento da disputa fundiária em um Brasil polarizado politicamente é o destaque do relatório Conflitos no Campo de 2023, divulgado nesta segunda-feira (22) pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Os agentes pastorais da CPT, braço da Igreja Católica na articulação com os trabalhadores rurais, contabilizaram 2203 conflitos no ano passado, maior número já registrado desde o início do monitoramento em 1985. Apesar disso, o número de assassinatos diminuiu em relação ao ano anterior, passando de 47 em 2022 para 31 em 2023.
Total de conflitos no campo bateu recorde em 2023
CPT registrou 2.203 conflitos no ano passado. Já o número de assassinatos teve queda
A coordenadora nacional da CPT, Andréia Silvério, destaca que o espólio do governo de Jair Bolsonaro continua influenciando o cenário político do país, mesmo após sua derrota eleitoral. Ela ressalta que as ideias de extrema direita promovidas pelo ex-presidente ainda estão presentes em diversas esferas de poder, como em governos estaduais, prefeituras, assembleias e nas câmaras municipais, contribuindo para a escalada da violência no campo.
“Bolsonaro fomentou um ódio que já existia, que é o ódio do latifúndio contras os trabalhadores sem terra, indígenas e quilombolas”, afirma. Silvério observa que desde 2016 houve um aumento nos conflitos no campo, que se intensificou durante os quatro anos do governo Bolsonaro.
Os dados da CPT mostram que o principal causador de violência nas questões relacionadas a disputas por terra são os fazendeiros (31,2%), seguido por empresários (19,7%), governo federal (11,2%), grileiros (9%) e os governos estaduais (8,3%). Considerando o total dos conflitos, o Estado e as forças militares seguem como principal causador de violência.
Povos tradicionais são os mais afetados por violência no campo
CPT registrou alta nas agressões contra sem-terras e trabalhadores rurais a partir de 2021 (em nº de casos)
Maiores agressores são forças do Estado, empresários e fazendeiros
Desde 2020, forças do Estado são os principais agressores, com 25% das ocorrências (em nº de casos)
Apesar de uma pequena diminuição das violências causadas pelo governo federal com a abertura para o diálogo com os movimentos sociais, isso não se traduziu em avanços na conquista de direitos, segundo a CPT.
Já os governos estaduais, de acordo com a pastoral, têm adotado uma postura de repressão policial intensa contra acampamentos, assentamentos, comunidades quilombolas e terras indígenas, contribuindo para inibir as ações de resistência dos trabalhadores rurais.
Na análise de um grupo de professores e pesquisadores da UFRJ e da UFF publicada pela CPT, que consta no caderno de Conflitos do Campo, está em curso um processo de contrarreforma agrária, que não foi revertida no primeiro ano do governo Lula.
Pistolagem e milícias
A análise da CPT aponta que o estímulo ao armamento da população durante o governo Bolsonaro está associado ao aumento das ocorrências de pistolagem, com 264 casos registrados em 2023, o maior número dos últimos 10 anos.
“A pistolagem sempre foi uma tática do latifúndio para retirada das famílias do território. Com a autorização para posse e porte de arma de fogo não só os fazendeiros, mas os pistoleiros tiveram aval para expulsar comunidades e destruir os bens de acampados”, avalia Andréia Silvério.
A contrarreforma, segundo a análise publicada pela CPT, é caracterizada pelo avanço da concentração fundiária, intensificação da grilagem de terras, abandono das políticas de redistribuição e reconhecimento de terras, e desmantelamento de políticas públicas de apoio aos trabalhadores rurais.
Durante os governos Temer e Bolsonaro, políticas voltadas para o campo foram extintas ou esvaziadas, incluindo assistência técnica, apoio à comercialização, educação e promoção da agroecologia. Isso começou com a eliminação do Ministério do Desenvolvimento Agrário no governo Temer e se intensificou sob Bolsonaro, com a transferência do Incra para o Ministério da Agricultura e cortes significativos no orçamento. Essa contrarreforma agrária coincide com o fortalecimento do agronegócio e da mineração no campo brasileiro.
A presença de grupos paramilitares, formados pelo agronegócio, é identificada pela CPT como um fator que contribui para a intensificação da violência no campo.
Um exemplo disso é o surgimento do grupo autodenominado “Movimento Invasão Zero”, que realizou pelo menos sete ações para expulsar indígenas e sem-terra de fazendas na Bahia, contando com a escolta armada de policiais militares. O grupo tem uma frente parlamentar homônima liderada pelos mesmos deputados que comandaram a CPI do MST.
Um desses ataques resultou no assassinato da indígena Maria de Fátima Muniz de Andrade, a Nega Pataxó, em janeiro deste (portanto fora do período analisado pelo relatório da CPT). O caso ocorreu em Potiraguá, na Bahia.
A Bahia foi o estado com maior número de conflitos registrados (249), seguido do Pará (227), Maranhão (206), Rondônia (186) e Goiás (167). Dentre as regiões, a região Norte foi a que mais registrou conflitos (810), seguida do Nordeste (665), Centro-Oeste (353), Sudeste (207), e por fim, a região Sul, com 168 ocorrências.
Das pessoas assassinadas em 2023, 14 eram indígenas, nove trabalhadores rurais sem-terra, quatro posseiros, três quilombolas e um funcionário público. A CPT destaca que a violência contra os povos indígenas tem aumentado exponencialmente desde 2016, tornando-os as principais vítimas dos conflitos no campo a partir de 2019.
Indígenas e MST frustrados
O mês de abril é fundamental para os povos do campo, que se mobilizam em diferentes frentes de luta. Nesta segunda (22) começa o Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília. O clima entre os indígenas é de decepção, pois era esperado que o governo Lula anunciasse a demarcação de seis terras indígenas. Porém, o presidente anunciou a demarcação de apenas duas na última quinta-feira (18).
“Sendo muito verdadeiro com vocês, sei que estão com certa apreensão, porque imaginavam que iam ter notícia de seis terras indígenas assinadas por mim. Nós decidimos assinar só duas, sei que isso frustrou alguns companheiros, mas eu fiz isso para não mentir para vocês”, disse Lula, verbalizando a frustração.
Já o MST promoveu o abril vermelho, com ocupações para marcar a data do massacre de Eldorado dos Carajás, em 17 de abril de 1999, no sul do Pará. Neste ano, foram 26 ocupações e criação de cinco acampamentos.
Em resposta à mobilização, o governo federal lançou um programa de reforma agrária chamado Terra da Gente. Até o final do mandato, a estimativa é que o programa assente 74 mil pessoas e regularize a situação de outras 221 mil.
“Uma proposta tímida diante da necessidade que existe”, avalia Andréia Silvério da CPT. Ao divulgar o balanço do Abril Vermelho, o MST destacou que o orçamento voltado para a obtenção de terra e direitos básicos no campo, como infraestrutura, crédito para produção, moradia, entre outros, é por dois anos consecutivos, o menor dos últimos 20 anos.
A Repórter Brasil mostrou que, até dezembro de 2023, o governo Lula repetiu o governo Bolsonaro e não comprou nenhum centímetro de terra para reforma agrária.