Manual com dicas para negros viraliza nas redes e escancara a triste realidade da população mais vulnerável que teme morrer sob a operação do Governo federal
Por Gil Alessi, do El País

“Se você é negro, preste atenção nisso que vamos falar (…) evite sair de casa em altas horas (…), leve o cupom fiscal de equipamentos caros e nunca ande sozinho”. As frases, que remetem ao cotidiano em um regime racista de exceção, fazem parte do vídeo Intervenção no Rio: como sobreviver a uma abordagem indevida, do jornalista Edu Carvalho, do site Faveladarocinha.com, e dos youtubers Spartakus Santiago e AD Junior. Publicado dias após o presidente Michel Temer anunciar que a segurança pública e o sistema prisional do terceiro Estado mais populoso do país ficará a cargo dos militares, o vídeo revela a triste realidade de quem corre o risco de ser morto pela polícia – ou pelo Exército – até mesmo por segurar uma furadeira.

Em um dos trechos do vídeo de pouco mais de três minutos, Santiago pede que “em lugares públicos, evite o uso de furadeira ou guarda-chuva longo. Parece bobagem mas muitas pessoas olham isso de longe e pensam que são armas de fogo. Prefira guarda-chuvas pequenos que podem ser dobrados e guardados em uma bolsa”. Não é bobagem mesmo. Em uma manhã de maio de 2010 um policial do Batalhão de Operações Especiais (Bope) do Rio de Janeiro assassinou com tiro de fuzil o fiscal de supermercados Hélio Ribeiro, de 46 anos, morador do Morro do Andaraí, na zona norte da capital. Ele estava na laje de sua casa prendendo uma lona com uma furadeira. À época, o capitão Ivan Blaz, porta-voz do Bope, afirmou que “o policial está transtornado psicologicamente”, e disse “lamentar demais o fato, uma vez que o policial tem uma carreira ilibada e ocorreu um fato infeliz”. Posteriormente o cabo Leonardo Albarello, autor do disparo, foi absolvido pela Justiça.
O alerta do vídeo ganha relevância com a intervenção militar no Estado uma vez que integrantes do Exército que vierem a matar civis durante uma operação no Rio não serão julgados pelo Tribunal do Juri, mas sim por uma corte militar, segundo uma lei aprovada no Senado em 2017. Entidades que monitoram o uso da violência pelas autoridades em comunidades pobres acreditam que isso é, na prática, uma carta branca para matar. Além disso, a taxa de homicídios por 100.000 habitantes de negros é quase o dobro da de brancos no Rio: 21,5 ante 41.
“Em caso de abordagem não faça movimentos bruscos e não afronte os agentes. Se for pegar algo na bolsa, peça permissão para o policial”, explica AD Junior em outro trecho do vídeo. Mais uma vez a dica de segurança está firmemente ancorada na realidade: o produtor de eventos Luis Guilherme dos Santos, de apenas 18 anos, foi morto pela polícia em Nova Iguaçu, região da baixada fluminense, em 4 de janeiro deste ano. Ele estava em um caminhão da empresa na qual trabalhava quando foi abordado. Ao descer do veículo sua mochila caiu no chão. Santos se abaixou para pegá-la, e isso bastou para que fosse alvejado pelas costas – na cabeça, abdômen e ombro.
Os autores do vídeo apostam na tecnologia como uma ferramenta – e aliada – para que os negros sobrevivam às abordagens. “Não deixe de andar com celular, com a bateria sempre carregada. Com ele você consegue fazer não só as ligações, mas também as gravações, e compartilhar a sua localização com amigos pelo whatsapp ou Facebook”, diz Carvalho. Ele também encoraja alguém que seja parado pela polícia ou pelo Exército a gravar a abordagem com o telefone. “Tente gravar o máximo de coisas. Data, local, vítimas, testemunhas… Com o celular na horizontal”, afirma. O jornalista também destaca que sem a autorização de um juiz, “ninguém pode olhar seu celular”.
O vídeo, apesar de lançado dias depois do anúncio da intervenção militar no Rio, vale para qualquer época do ano, com ou sem Exército, em praticamente qualquer grande cidade brasileira onde a população negra é mais vulnerável. Por fim, o vídeo traz um lembrete importante. “Não leve pinho sol ou água sanitária dentro de sua mochila ou bolsa”. O trecho faz uma menção ao ocorrido com o catador de materiais recicláveis Rafael Braga, que amargou anos de prisão após ser detido em junho de 2013 portando uma garrafa de desinfetante. Segundo o Ministério Público, ele iria utilizar o material para fazer coquetéis Molotov. Foi condenado a quatro anos e oito meses em regime fechado.

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