“A regularização fundiária garante a segurança jurídica, a permanência das famílias nos locais onde elas moram”.
Por Flaviana Serafim | Jubileu Sul Brasil*
O direito à posse formalizada, ou “no papel” como se diz, é parte das batalhas pelo direito à moradia. A regularização fundiária é peça-chave na luta porque, com a regularização da posse, que garante às famílias o direito sobre onde moram, traz inclusão social e o acesso a outros direitos essenciais, como a educação, saúde e saneamento.
Como explica a advogada Lara Costa, assessora jurídica do Sinergia Popular em Fortaleza, a regularização fundiária é o que permite “incluir as pessoas na cidade formal, incluir acesso a serviços básicos, incluir as moradias como unidades habitacionais que trazem diversas demandas, e permite conglomerar as demandas e os direitos sociais dessas famílias de baixa renda”.
Nesse sentido, promove não só o direito social à moradia “como outros direitos, com o acesso básico a partir da regularização fundiária e da inserção dos assentamentos informais na cidade formalizada. A regularização fundiária cumpre esse papel e é preciso que os gestores públicos entendam isso para que a regularização seja aplicada”, afirma.
Segurança contra a especulação
“A regularização fundiária garante a segurança jurídica, a permanência das famílias nos locais onde elas moram”. Por isso, a advogada destaca o papel da regularização fundiária como uma segurança importante contra os riscos de remoção e deslocamentos de famílias pelos megaprojetos, pela gentrificação e pela especulação do mercado imobiliário.
Lara deixa claro quem é o grande vilão dessa regularização para os mais pobres. Com a regularização fundiária as famílias têm suas moradias registradas formalmente, e isso torna mais caro fazer remoções e aumentar a especulação sobre aquele local.
“É mais caro expulsar, remover, deslocar famílias dentro da cidade quando há o direito social à moradia garantido e regularizado. Não é do interesse do mercado e da especulação imobiliária essa regularização fundiária dos assentamentos informais por toda a cidade. São realmente inimigos do direito social à moradia”.
Desafios para avançar
Além da especulação, ela aponta como desafios da regularização fundiária a atuação de grupos criminosos organizados, devido à disputa de territórios; a falta de planejamento e de interesse do poder público, “que não enxerga a regularização fundiária como parte do direito social à moradia”.
Frente aos desafios, como avançar na luta? “É muito importante alcançar a regularização fundiária e pensar outra cidade, que consiga garantir a moradia como um direito universal, para todos”. Assim, a advogada reforça a urgência de que a regularização seja compreendida como parte do direito social à moradia:
“A segurança jurídica da posse é uma das dimensões do direito à moradia, todas as pessoas têm esse direito social à regularização fundiária, de ter o seu papel da casa. Então se faz urgente que a sociedade civil, os movimentos organizados abram os olhos dos gestores públicos exigindo essa regularização e o direito à moradia por completo na cidade”.
Outros caminhos para o direito à moradia
Em entrevista para a revista do Sinergia Popular, o professor Carlos Vainer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), traz outras visões para a reflexão sobre a regularização fundiária no Brasil. Para o sociólogo, que coordena o Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ), a questão não é assegurar a regularização fundiária, mas o direito à moradia.
Por isso, Vainer avalia que é preciso “entender que a regularização fundiária não deve ter como foco objetivo a delimitação de lotes a serem transformados em propriedades privadas individualizadas”. Diria que se fosse assim seria um problema absolutamente inviável, levaria dezenas de anos, custaria bilhões de Reais chegar nas favelas e loteamentos periféricos para demarcar e delimitar lote a lote para depois atribuí-los como propriedade privada. Só os custos e o tempo dessas ações inviabilizam esse projeto”.
E quais as alternativas? Ele diz que o primeiro desafio para colocar em prática o direito constitucional à moradia “é assegurar o exercício desse direito sem associá-lo à propriedade privada, sem associá-lo à casa como propriedade, nos marcos de uma outra concepção que não seja a da propriedade privada”.
Vainer critica o consenso – “fruto de uma propaganda intensa feita na ditadura militar” – de que o direito à moradia seria equivalente ao direito da casa própria, ou seja, o direito à moradia equivalente à propriedade. “Não é isso que está na Constituição de 88 e não é isso que a meu ver devemos ter como objetivo. Inclusive não é isso que se pratica em muitos países, onde o acesso à moradia não está associado ao acesso à propriedade, à casa própria”.
Como exemplo, o professor cita o programa francês de habitação, que tem aluguéis moderados que asseguram moradia social, com valores compatíveis com a renda dos moradores, “sem que o morador se transforme em proprietário porque a propriedade é do Estado, que permanece proprietário dos imóveis. Os moradores não são obrigados a contrair dívidas para ter acesso à moradia, como acontece quando o acesso à moradia se dá através da aquisição da propriedade”, pontua.
Espaços coletivos
No enfrentamento ao cenário atual, Vainer afirma que os movimentos devem manter a luta pela conquista de terras públicas e para serem colocadas em uso como determinado pela lei. O sociólogo também defende o aprendizado com experiência de outros países, além de reforçar a ideia da regularização fundiária deve ser compreendida para além da regularização e demarcação de lotes individuais privados.
“Podemos estar regularizando grandes aglomerados, a totalidade de uma favela totalidade, de um loteamento e transformar isso num espaço de uso coletivo sobre a propriedade do Estado. Ao meu ver, mais importante do que assegurar a propriedade é ter a garantia da segurança e da posse do uso, impedir as remoções e impedir a transformação da cidade num grande negócio pela construção de espaços privados”.
O sociólogo completa ressaltando que “quanto mais espaços coletivos, mais espaços de uso comum tiver a cidade, maior será a perspectiva de assegurar também os direitos de posse e uso destinados à moradia”, conclui.
*A entrevista foi publicada originalmente na Revista Sinergia Popular, acesso todo conteúdo no link abaixo: