No Amapá, muitas mortes e uma mesma versão: troca de tiros. Familiares das vítimas afirmam que foram ameaçados após denúncias à Corregedoria
Por Abinoan Santiago e Denise Muniz, da Pública
Willian Natividade Silveira, morto no ano passado aos 27 anos, é um dos 184 mortos pela Polícia Militar (PM) amapaense desde 2015, segundo os dados obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI).
A versão mais comum dos policiais para as mortes praticadas é a troca de tiros, também conhecida como “resistência seguida de morte”, um expediente comum utilizado por policiais em todo o país quando pretendem forjar uma execução.
Ao que indicam as investigações, a morte de Willian também ocorreu em outra alegada troca de tiros com a PM, em 22 de março, à luz do dia, por volta de 7h30 da manhã, em uma “área de ponte” no bairro Congós, na zona sul de Macapá.
Segundo a versão da polícia, Willian morreu ao tentar atirar na guarnição. Segundo a família, foi uma armação.
“Ele pedia ‘por favor, não me matem’ e dizia ‘eu perdi, eu perdi’”, lembra Jéssica Moura da Silva, de 27 anos, autora do vídeo que mostra a vítima nos fundos da casa onde morava, instantes antes de ser morto – Jéssica é ex-mulher de Willian.
As imagens exibem os policiais pisando na cabeça da vítima deitada ao chão. Um dos PMs, ao ver que vizinhos acompanhavam a ação, mirou a arma para um dos moradores. Com a comoção ao redor, os militares levaram Willian para dentro do imóvel. “Naquele dia estava tudo calmo aqui na ponte. Todos dormiam. A atual mulher do Willian ouviu barulho dos cachorros latindo e, quando foi ver, eram os policiais. O Willian fugiu, pulando no lago, mas os policiais começaram a atirar, então, ele voltou”, narra Jéssica.
Ela conta que buscou o celular e se escondeu no banheiro da sua casa, que é vizinha à de Willian, para filmar a ação policial. A jovem diz que, ao entrarem na casa com o ex-marido, os militares colocaram uma toalha preta em uma das janelas com vista para a ponte, para que os vizinhos não pudessem enxergar o que ocorria no imóvel.
“Nem a mulher do Willian conseguiu entrar na casa. Foi quando o ouvimos pedir novamente para não ser morto. Ele gritou o meu nome e veio o disparo. Todos ficaram desesperados. Nesse momento, um policial saiu falando ao rádio informando troca de tiros para outras guarnições. Todos gritaram que era mentira, que não havia troca de tiros. Impossível ele [Willian], sozinho nesta cozinha pequena, trocar tiros com esses policiais”, sustenta Jéssica.
Um dos policiais foi à viatura e retornou com um objeto, segundo a ex-mulher de Willian, semelhante a uma arma de cano vermelho, que estava dentro do seu colete. Essa versão foi confirmada por outras cinco testemunhas, de acordo com depoimentos que constam no inquérito do Ministério Público (MP), que investigou o assassinato.
Jéssica tinha dois filhos com Willian, de 3 e 5 anos. Ela conta que o mais velho chora muito ao lembrar-se do pai e tem pavor da polícia. “Ele tem muito medo da polícia, corre e chora quando os avista na ponte. Ele diz: ‘Foi essa polícia que matou meu papai’. Eu fico tentando acalmá-lo”, disse emocionada.
Por ter feito o registro dos momentos que antecederam o assassinato de Willian e depois de depoimento ao Ministério Público, Jéssica afirma que recebeu uma ligação telefônica com ameaças de morte.
“Ligaram de número desconhecido, me aconselhando a desistir, dizendo que era melhor não continuar com a denúncia, porque quem perderia era eu. Era voz de homem e falava que o Willian era bandido. Eu disse que não importava. Ele tinha seus erros, mas nunca matou ninguém. O homem falou que eu estava correndo risco e que quem se mete com a polícia só perde”, lembra.
A mulher comunicou o episódio à Promotoria de Justiça e, apesar do medo ao sair à rua, não pensa em desistir.
O MP denunciou a morte de Willian. A ação criminal tramita contra os policiais envolvidos no caso: os sargentos Adrielson Maia dos Santos e Luiz Carlos Nunes Amaral e os soldados Edson Guedes da Silva e Sebastião Santos das Merces Filho.
Charles Bordalo, advogado dos réus, afirma que os clientes agiram no estrito cumprimento do dever legal. A comunidade da rua teria chamado a polícia por causa de ameaças proferidas por Willian, diz ele.
“Os policiais foram para lá, provocados, chamados pela população, porque esse rapaz [Willian] estava praticando crimes”, garante. O MP contesta: não existiu chamado para viatura naquele dia para aquele endereço.
Bordalo afirma que três policiais estavam dentro da residência: dois foram vistoriar os compartimentos do imóvel, enquanto um ficou com a vítima. O advogado conta que a vítima morreu depois de ter sacado uma arma que estava embaixo de algumas roupas sobre a mesa da cozinha. Willian teria se levantado depois de ter sido autorizado pela polícia a tomar água. Antes, os militares teriam permitido que o rendido trocasse de roupa.
“Como ele [Willian] estava sujo, foi autorizado. Até que ele trocasse a bermuda. O policial falou que, como ele seria conduzido, iria sujar a viatura. Estava tudo tranquilo. O Natividade pediu para tomar água e, nesse momento, puxou a arma que estava escondida, para atirar no policial Adrielson. Foi então que o Adrielson atirou nele”, defende Bordalo.
O MP afirma que não há motivos para a mudança de tratamento com Willian, praticado pelos policiais fora da casa e depois dentro do imóvel, a ponto de deixá-lo livre para trocar de roupa e beber água por conta própria.
Uma testemunha ouvida na investigação afirma que por uma das frestas da casa foi possível ver Willian ajoelhado. A posição da vítima, vista pelo vizinho e a perícia, converge com o fato de o tiro do policial ter partido de cima para baixo.
“A versão da testemunha e a perícia apontam que a vítima estava rendida. Está provado que não existia nenhuma arma dentro da casa. Esse negócio de dizer que os policiais deixaram ele beber água e trocar de bermuda não existe”, comentou Eli Pinheiro, promotor de justiça.
Gabriel Dollano dos Santos Galvão, morava com Willian e o considerava um pai. Ele estava no dia do crime e afirma que não havia arma na casa. Ele, os familiares e amigos garantem que não houve reação da vítima à prisão e que a arma que estava junto ao corpo foi plantada pela polícia. O disparo atravessou a vítima, raspou em uma toalha de mesa e atingiu a parede da casa, conta Gabriel.
Depois dos disparos dentro da casa, um outro vídeo registrado por Jéssica mostra um dos policiais manuseando uma arma do lado de fora. O advogado dos acusados diz que a intenção era descarregar o armamento para que não ocorresse uma tragédia em razão da possibilidade de a residência ser invadida por populares. A defesa ainda afirma ser mentira a ida de um dos militares para buscar uma arma a fim de encenar uma troca de tiros.
Bordalo diz que solicitou ao MP os vídeos e celulares que fizeram as imagens, porque, segundo ele, há cortes. Jéssica justifica que o nervosismo a fez pausar, sem intenção, o registro.
Charles Bordalo, advogado dos réus, afirma que os clientes agiram no estrito cumprimento do dever legal.
Devido à repercussão, os quatro policiais chegaram a ser presos, mas foram soltos quase dois meses depois. Eles respondem em liberdade. Enquanto os militares estavam encarcerados, um ato público realizado por colegas de farda ocorreu na orla de Macapá, como forma de pressionar pela soltura dos acusados.
Para a família de Willian, uma rixa pessoal entre ele e um dos sargentos da viatura, Luiz Carlos, teria sido a real motivação para o crime. Ambos eram ex-vizinhos. A defesa confirma que eles moravam próximos, mas afirma que o sargento havia se mudado havia vários anos.
“Esse sargento morou lá na mesma ponte e já havia verbalizado que, quando fosse prender o Natividade, não iria trazê-lo com as próprias pernas”, confirmou o promotor Eli Pinheiro.
Jéssica, a ex-mulher da vítima, disse que o sargento era conhecido na ponte. “Ele dizia que o Willian dava muito trabalho”, afirmou. Willian tinha passagem pela polícia pelo crime de roubo.
A perda de um filho
Em Santana, a 18 quilômetros de Macapá, mais um crime entrou para as estatísticas. Trata-se das mortes de Albertino Teles Martins, de 28 anos, e Izzi Willian da Silva Maduro, de 16 anos. O caso ocorreu na noite de 10 de maio de 2018, no bairro Jardim de Deus.
Tudo começou quando uma guarnição do 4º Batalhão de Polícia Militar, responsável pela segurança pública de Santana, teria recebido uma chamada informando que a dupla estaria ameaçando os moradores da região com uma arma.
A versão da PM diz que a viatura foi recebida a tiros pela dupla ao chegar à residência, motivando assim o revide e a consequente morte dos suspeitos. Esse relato é contestado pelos vizinhos e familiares que presenciaram o fato, ouvidos pela Pública. Eles afirmam não ter havido troca de tiros.
Para chegar ao dia 10 de maio, quando ocorreu o crime, é preciso voltar 15 dias. Em 26 de abril, o eletricista Albertino Martins saiu definitivamente da penitenciária do Amapá depois de ter cumprido pena por roubo ao longo de um ano e meio. Ao retornar ao convívio social, em Macapá, encontrou a então esposa com outra pessoa e decidiu mudar de cidade. O destino escolhido foi Santana. O bairro João de Deus, por ser desassistido de serviços públicos, acabou sendo o local mais acessível financeiramente para alugar uma casa.
“Ele ainda chegou a levar as filhas para lá, para passar o dia. Esse bairro de Santana, por ser o mais humilde de lá, era o mais viável”, confirmou a irmã de Albertino, Juliana Sarraff, de 21 anos.
A residência encontrada tem como proprietária a dona de casa Marilúcia da Silva, de 36 anos, mãe da outra vítima da PM, o adolescente Izzi Willian. Segundo ela, Albertino encontrava-se havia 15 dias morando na casa. A mulher afirma que nem o filho nem ela tinham relação de amizade com o inquilino.
Izzi Willian namorava havia dois anos uma vizinha de 18 anos, que preferiu não ser identificada. Ele a conheceu quando ainda morava no bairro Jardim de Deus, na casa onde ocorreu o crime. Meses antes da morte, sua família havia se mudado para o bairro Remédios, na região central da cidade.
No dia do crime, o casal dava início a um sonho: construir a casa própria. A pretensão era viver em uma residência fruto de herança deixada pelo pai da jovem, dois terrenos adiante da casa onde Izzi Willian morava, que no momento estava alugada para Albertino.
Como o futuro imóvel do casal precisava de reparos, o quintal foi capinado e uma parede de tijolos começou a ser levantada. O serviço, naquele 10 de maio, terminou por volta de 20h.
Ao encerrarem a jornada, a namorada partiu para casa em um mototáxi, enquanto, na varanda da frente de sua antiga residência, Izzi esperou outra moto, que o levaria ao centro.
Durante a espera, policiais militares invadiram o imóvel por trás e pela parte lateral. Segundo relatos de vizinhos e da família, ao ser abordado, Izzi Willian teria se rendido e mesmo assim foi alvejado com um tiro no pé esquerdo. A vida do adolescente poderia ter se encerrado já naquele instante não fosse por um detalhe: o policial escorregou ao disparar pela segunda vez, dizem testemunhas.
“Um dos policiais veio pelo lado da casa e ficou escondido. Quando o Willian passou, ele falou ‘mão na cabeça’ e atirou. Nisso, o policial escorregou e, quando viu que já tinha gente vendo, não atirou mais. No hospital, quando perguntaram o que havia acontecido, o policial disse: ‘Eu iria atirar mais nele. Sorte dele que escorreguei. O diabo o protegeu. Era para matar mesmo’”, lembra a namorada de Izzi Willian.
Os policiais que entraram pelos fundos subiram para o segundo pavimento e mataram a outra vítima, Albertino Martins. O eletricista encontrava-se deitado em uma rede e, conforme relatos de vizinhos, implorou para não ser morto. Ao todo, nove disparos o atingiram.
“Ficou uma coisa sem sentido porque, se estavam trocando tiros, cadê as balas? Não apareceu nada disso. E como que uma pessoa troca tiros com a polícia e é atingida nove vezes? Isso foi uma execução, na verdade”, questionou Juliana.
O caso chamou atenção de toda a rua no bairro Jardim de Deus. A mãe de Izzi Willian recebeu de um ex-vizinho a informação de que o filho fora atingido por um tiro da PM. Ao chegar ao local, a dona de casa se transformou na terceira vítima da polícia, ao avistar o filho em frente à residência.
“Quando eu cheguei, meu filho estava na frente de casa deitado no chão. Eu me joguei em cima dele e me bateram, ameaçaram de morte. Meu filho não respirava mais e o policial zombava dizendo: ‘Esse aí já foi, está no inferno’. Depois de uma hora, meu filho gritou ‘mãe’. Nesse momento ligamos para o socorro, que até então não havia sido chamado. O policial entrou na ambulância e retomou a ameaça. Eu disse que iria denunciar e ele falou que eu poderia fazer isso, mostrando o nome dele na farda. A mesma coisa aconteceu no hospital”, relatou.
Segundo a mãe e informações da própria PM, Izzi Willian não tinha passagens pela polícia por nenhum tipo de crime. Ele cursava o oitavo ano do ensino fundamental em uma escola pública de Santana.
A morte do adolescente ocorreu por volta de 2h da madrugada de 11 de maio, no Hospital de Emergências de Macapá. O óbito se deu pela perda excessiva de sangue. Para a família, o menino “não teve um atendimento decente”, por ter sido tratado como um “marginal” na unidade de saúde.
A mãe conta que, depois da morte do filho, enfrenta outro problema: as ameaças de policiais. Segundo ela, a troca de residência em Santana é constante para que não seja encontrada por militares. As intimidações começaram depois de ter denunciado a guarnição na Corregedoria da PM. O caso foi arquivado.
“Estou sendo ameaçada, a namorada dele também, mas não vou desistir porque não foi de um cachorro que eles tiraram a vida. Foi do meu filho. Ele veio para cá para morrer, nunca matou ninguém. Tenho certeza que esse filho da p…, quando chega à noite, tem o filho dele para abraçar. Eu não posso mais fazer isso. Fica por isso mesmo”, desabafou.
A perda de dois filhos
O professor Daniel Marcelino, de 45 anos, perdeu dois filhos no mesmo dia
Sofrimento semelhante vive o professor Daniel Marcelino, de 45 anos. Em um único dia, ele perdeu dois filhos – Antônio Gabriel Souza dos Santos, de 16 anos, e Davi Souza dos Santos, de 22 –, ambos em decorrência de intervenção policial. O caso aconteceu em 23 de maio de 2018, no bairro Santa Rita, na zona sul de Macapá.
Daniel Marcelino soube da morte dos filhos depois de ter saído de um culto da igreja e ligado o celular por volta das 13h. O telefonema recebido foi o estopim para que entrasse em desespero depois de uma noite de angústia.
Um dia antes do crime, o filho Antônio Gabriel pegou escondido a motocicleta do pai. Sem notícias do jovem, Daniel Marcelino procurou as polícias Militar e Civil para informar o desaparecimento do adolescente e do veículo. A intenção, segundo ele, era “não ser responsabilizado”, caso agentes da segurança pública encontrassem o filho dirigindo sem permissão.
“Eu imaginava que ele estava na casa da mãe porque, quando sumia, esse era o destino corriqueiro”, explicou. O adolescente Antônio Gabriel, sem passagem pela polícia, frequentava uma igreja evangélica com o pai e estava com viagem marcada para 29 de maio, com destino ao Espírito Santo, para um seminário religioso. Era o presente de aniversário. Ele nasceu no dia 21 do mesmo mês.
O irmão, Davi Sousa dos Santos, tinha passagem pela penitenciária do Amapá. Ele ficou um ano em regime fechado por causa de um roubo de celular, mesmo sendo réu primário, conta o pai. O jovem foi solto no início de 2018.
Segundo a versão policial, as mortes dos irmãos ocorreram durante uma perseguição por volta das 10h de 23 de maio. Eles estavam na moto do pai e teriam tentado roubar o celular de uma pedestre no bairro Santa Rita. Após o suposto crime, a vítima teria acionado a polícia e informado a placa do veículo.
Durante ronda ostensiva, o Batalhão de Rádio Patrulhamento Motorizado avistou a motocicleta e pediu que os irmãos parassem. Ao desobedecerem, a perseguição foi iniciada, afirma a polícia.
As versões do pai e da polícia convergem: em determinado momento da fuga, os irmãos caíram da moto e se esconderam numa região de mata no bairro Santa Rita. Nesse momento teria começado a troca de tiros relatada pela polícia, o que o pai contesta.
“Eles caíram da moto e fugiram para dentro do mato. Acredito que os meus filhos fugiram porque eu iria ser responsabilizado. Um era menor e o outro não tinha documento de habilitação. Mas a área que eles desceram é cercada de bocas de fumo. As testemunhas até me disseram que, se eles tivessem dobrado para a outra rua, isso não teria acontecido, porque não era de mata nem de venda de drogas”, comentou Marcelino.
Segundo ele, a cena do crime foi alterada. Marcelino acredita que, diferentemente do que a polícia relatou no Boletim de Ocorrência, os filhos não portavam arma de fogo. Além disso, ele também contesta a tentativa de roubo.
“No dia que fui à delegacia buscar minha moto, encontrei um tenente do batalhão e as supostas vítimas dos meus filhos. Essas vítimas eram duas policiais militares, tanto que chegaram lá cumprimentando os colegas, rindo e tranquilas. Foi inventada uma tentativa de assalto de celular. Quem é vítima não chega na sala cheia de polícia desse jeito”, declarou o professor.
Apesar de revoltado, Daniel Marcelino não registrou queixa contra os policiais. Ele lamenta não ter conseguido um advogado para auxiliá-lo.
O MP não acompanha o caso, e no Boletim de Ocorrência da PM consta ter havido troca de tiros. Não há informações sobre a quantidade de disparos que mataram os irmãos.
Queima de arquivo
A letalidade policial do Amapá ganhou nova característica no dia 21 de junho de 2018, quando o sargento da PM José Wilson Maciel e o soldado Lucas Vilhena Batista foram presos, durante a operação Letus, deflagrada pelo Ministério Público Estadual e Polícia Civil.
Diferente da versão da troca de tiros empregada por policiais, segundo o MP, a dupla é suspeita da morte de Micherlon Aleluia, de 33 anos, funcionário de um atacadão de alimentos. Ele foi assassinado no dia 12 de março de 2018, quando saía do trabalho, na zona sul de Macapá. A vítima era testemunha de um assassinato ocorrido em 2016 pelo qual responde José Wilson. “Foi queima de arquivo”, diz o MP.
De acordo com o MP, o sargento ordenou a morte de Micherlon, e Lucas Vilhena o executou. Ainda conforme o MP, José Wilson estava trabalhando no dia do crime. Uma câmera de segurança do atacadão registra o sargento rondando o estabelecimento momentos antes do crime.
A vítima foi monitorada diariamente pelos suspeitos e morta a caminho de casa, com cinco tiros. Imagens de câmeras de segurança mostram toda a movimentação do crime, registrando até mesmo o carro usado pelos atiradores, um modelo Pálio de cor preta. Antes de Micherlon sair do trabalho, de bicicleta, uma viatura da PM também auxilia no monitoramento dos passos da vítima.
O MP narra que os investigadores conseguiram informações precisas de que o soldado Batista Filho estava dentro do carro preto.
Micherlon foi testemunha importante da morte do servidor público Joaquim Rubilota de Sousa Rodrigues, ocorrida em 2016, na capital. Segundo o MP, a vítima havia saído do carro do sargento José Wilson depois de uma discussão e levou tiros nas costas. Um áudio obtido pela Pública mostra a testemunha dizendo, em audiência na Justiça em 12 de dezembro de 2017, estar tranquila ao depor diante do policial acusado.
“Em janeiro, ele [Micherlon] já havia sofrido um atentado a bala. Escapou ao entrar em um terreno baldio. Em março deste ano, a mulher do José Wilson foi até o local onde a vítima trabalhava, conseguiu informações sobre ela, e depois esse carro o seguiu, e, um quilômetro e meio depois, ele foi executado. Há provas claras do envolvimento do José Wilson nessa morte, e ele já havia verbalizado que mataria todas as testemunhas”, disse o promotor de justiça Eli Pinheiro. A mulher do sargento também foi presa na operação.
A defesa dos policiais afirma que não existem imagens nem outra prova material do MP que confirmem a sustentação da autoria dos disparos contra a testemunha. “A vítima não pediu proteção porque achava que estava prestando um serviço à sociedade”, observou o promotor.
Até o fechamento desta reportagem, os três permaneciam presos preventivamente, segundo o MP. “Esse José Wilson tem toda característica de um psicopata”, classificou Eli Pinheiro.
Em 2017, execuções em série
No Amapá, uma força-tarefa composta por delegados e agentes da Polícia Civil e membros do Ministério Público investiga uma série de assassinatos cometidos em apenas uma semana em 2017. Os crimes ocorreram após a morte do sargento da PM Hudson Conrado, de 46 anos. Ele foi assassinado a tiros dentro do próprio carro, no dia 18 de outubro de 2017.
Segundo o MP e a Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, em razão das características dos crimes, a linha de investigação indica que os suspeitos sejam policiais militares.
“Foram sete mortes na madrugada seguinte à morte do sargento. Os calibres das armas utilizadas em alguns casos são privativos de uso da polícia. Outra situação é o modus operandi. Para que alguém passe num veículo em movimento e consiga disparar e acertar, essa pessoa tem um treinamento para isso. Dificilmente um bandido qualquer teria essa precisão. Então, são fatos que vão sendo alinhavados”, pontuou Maurício Pereira, membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB.
Dos sete mortos a que se refere Pereira, cinco não tinham passagem pela polícia. Os outros dois tinham registros de violência doméstica e furto.
“A maioria nem tinha antecedentes criminais. Vimos, em grupos de redes sociais, que haveria retaliações enquanto esse sargento era sepultado”, comentou Eli Pinheiro.
A tese da investigação é que as mortes teriam sido um ato de vingança pela morte do sargento. Dos veículos utilizados nas ocorrências, o MP diz que existe a possibilidade de um deles ser de um policial militar. “Como é um processo sigiloso, não podemos revelar detalhes, mas já tem pessoas investigadas. […] Pela forma como as pessoas foram mortas, quem atirou era experiente, um bom atirador. Teve homicídio com distância considerável, e atingiu a cabeça. São oito mortes, e precisamos chegar a esses responsáveis”, declarou o promotor de justiça.
Este texto é resultado do Concurso de Microbolsa de Reportagem Violência Policial e Intervenção Militar, realizado pela Agência Pública em parceria com a Conectas Direitos Humanos.