“O assédio e as ameaças que sofrem tornam-se cada vez mais comuns ao travar lutas que ameaçam interesses empresariais, onde em alguns casos chegam a matar pela ação de pistoleiros”. Militante da Marcha Mundial de Mulheres Fio Fio, Michelle Donoso alerta para o crescimento das detenções politicas das defensoras/es de direitos humanos e da natureza. Confira a entrevista.
Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil
Milhares foram às ruas de todo o Chile no último 18 de outubro, marcando os dois anos desde o início do estallido social que fez a população protestar não só contra o valor da tarifa de transporte público, mas também contra o neoliberalismo, contra a privatização da água, por participação popular, por aposentadorias dignas, educação gratuita, pelo reconhecimento do Wallmapu, os territórios historicamente pertencentes ao Povo Nação Mapuche.
Desde a “primavera chilena” de 2019, a agenda popular está em pauta e o povo nas ruas – a Assembleia Nacional Constituinte é um dos resultados dos protestos – mas não sem que a forte repressão do Estado chileno siga se aprofundando para além dos muitos manifestantes feridos nos olhos com balas de borracha. Cresceram as prisões políticas que acontecem só em Santiago, mas também em outras regiões do país onde o governo chileno coloca a repressão estatal – prisões, assassinatos, desaparecimentos – contra os povos indígenas que reivindicam seus territórios e outros direitos.
Para tratar do tema, o Jubileu Sul Brasil entrevistou a jovem militante chilena Michelle Donoso, da Marcha Mundial de Mulheres Fio Fio, como parte da campanha de Defesa de Defensoras/as de Direitos Humanos e da Natureza, promovida pela Rede Jubileu Sul/Américas.
Ela comenta o contexto das prisões políticas e a relação com o modelo neoliberal e patriarcal que defende os interesses do capital usando a força do Estado, as mudanças necessárias contra as detenções, e como as mobilizações e a construção de uma nova Constituição no Chile podem mudar o cenário da luta por direitos dos povos e da natureza.
Qual é a situação no Chile em relação às prisões políticas? Gostaríamos que comentasse especialmente a violência sofrida pelos homens e mulheres Mapuche e outros defensores de direitos humanos
Michelle Donoso: a situação das prisões e detenções políticas e prisões é de aumento sustentado e permanente, desde aquelas décadas em que se desenvolveu a luta social de massas para derrubar a ditadura de Pinochet até a última década, em que a luta se concentrou nas demandas estruturais, que exigem a queda do modelo neoliberal, do sistema capitalista, patriarcal e colonial. O contexto das prisões políticas ocorre num momento de ascensão da organização e mobilização popular, em que se destaca a participação da juventude, de setores precarizados, do movimento feminista e dos povos indígenas, em particular do Povo Nação Mapuche. Para isso recorre-se à violência política e ao terrorismo por parte do Estado, que viola permanentemente os direitos humanos da sociedade civil, especialmente dos setores mobilizados e precarizados.
Tudo isso se tornou mais nítido depois da mobilização popular de outubro de 2019, quando se massificiou a prisão política a mais de 2.000 pessoas por meio de medidas cautelares como prisões preventivas, muitos meses de prisão sem julgamentos, sentenças que se baseiam nos relatos de agentes repressores do Estado e uma série de medidas extremamente injustas, que sem dúvida servem como castigos exemplares para o resto da sociedade, onde a institucionalidade deixa claro que vai violentar e perseguir quem se atrever a agir contra os parâmetros da atual modelo.
Essa situação de repressão e prisões dos manifestantes vem junto da mais grosseira e bestial repressão do aparelho de Estado, que o povo Mapuche vem enfrentando há muito tempo com a militarização do Wallmapu (território Mapuche), das cidades e do território chileno. Ficou evidente durante o período de revolta popular com assassinato, mutilação, tortura, violência sexual, política, detenções ilegais, execuções simuladas, encobrimentos etc. Isso também anda de mãos dadas com a impunidade permanente para os violadores de direitos humanos e para os responsáveis políticos dessas violações, há um fechamento de fileiras por parte das instituições, o que tem sido uma mensagem clara para as forças armadas e a polícia de poderem continuar com suas ações criminais sem maiores represálias.
É preciso lembrar que as estruturas de dominação e suas ações são fortemente pautadas pela defesa do capital e dos interesses das grandes empresas transnacionais. Isso se evidencia de forma mais concreta e crua com a militarização do Wallmapu (território Mapuche) para proteger os interesses da indústria florestal que usurpou o território das comunidades e danificou os ecossistemas que ali existem.
Por isso, o setor autonomista[1] defende com ferocidade seu projeto político de recuperação territorial e reconstrução nacional por meio do confronto direto com o capital, que lhe custou a morte de muitos weichafes[2] e a prisão de muitos deles, fazendo com que sejam as mulheres mapuche as que têm que assumir totalmente o cuidado dos filhos e gerar o sustento econômico do lar, o que em muitos casos dificulta a participação das mulheres na luta.
No caso das lideranças sociais, defensoras e defensores dos territórios, a perseguição e as ameaças que sofrem tornam-se cada vez mais comuns ao travar lutas que ameaçam interesses empresariais, onde em alguns casos chegam a matar pela ação de pistoleiros, como é o caso de Macarena Valdés, uma mulher Mapuche que enfrentava a construção de uma hidrelétrica em Tranguil, num assassinato disfarçado de suicídio.
Essa situação está ligada à mudança do governo Bachelet para o governo Piñera? Ou é algo que já acontecia, antes de Piñera assumir a presidência?
A situação de violência estatal, repressão e prisão de quem luta é sistêmica. E tem sido levada a cabo pelos diferentes governos, tanto da antiga concertación [coalizão de partidos políticos chilenos de centro-esquerda com social-democratas e democratas-cristãos, surgida no final da década de 1980 em oposição à ditadura de Augusto Pinochet] como da direita mais dura, que encarnam mais de 30 anos de consolidação do modelo neoliberal, onde todos os seus aparatos de segurança e ações de violência de Estado se configuraram há vários anos atrás, décadas atrás, como seria o caso da formação do Alto Comando militar e da polícia na lógica do inimigo interno, que é o legado da Escola das Américas para defender o modelo estabelecido na ditadura cívico-militar . Infelizmente, nos últimos 20 anos, onde várias coalizões políticas estiveram no governo, muitas pessoas foram assassinadas e o número aumentou na revolta popular.
O que acontece em particular com o último governo de Piñera é o declínio da polícia e das forças armadas em geral, dada a corrupção de seu alto comando que questionou todas as suas ações, desencadeou a falta de legitimidade no nível social e que se intensificou no processo de revolta popular, onde mostraram, como esperado, sua lógica e cultura de violência e repressão contra os setores populares que lutam.
Apesar do fim da ditadura chilena, essa forma como a polícia atua hoje tem a ver com o legado do passado ditatorial? O que é preciso mudar em relação às polícias?
Como afirmei, é evidente que as instituições que detêm o monopólio da força são herdeiras de uma política estrutural que se arrasta há mais de 50 anos. A formação do funcionalismo, as políticas de repressão e a defesa de um conjunto de interesses das elites estão ligadas ao próprio modelo e aos sistemas que procuram perpetuar. Em outras palavras, o capitalismo patriarcal, colonial, em sua fase neoliberal, é defendido de forma integral, cultural, institucional e militarmente.
A diferença é que nos últimos anos isso é muito mais massivo e é percebido de forma geral porque o próprio modelo não consegue mais processar institucionalmente as demandas e reivindicações populares, obrigando setores da população a gerar cenários mais condizentes com seus interesses. É evidente o acúmulo de contradições existentes, entre os desejos dos povos e as exigências do sistema para continuar se acumulando, o que tem forçado os grandes capitais e suas instituições estatais a atuarem em busca da defesa de seus interesses e usam a força se necessário .
Isso porque a dominação não é mais capaz de continuar a usar o consenso como mecanismo de controle e usa o seu outro lado, que é o da violência mais explícita para manter a hegemonia e as correlações de forças favoráveis ao bloco dominante.
Quais são as principais demandas e mudanças para acabar com essas prisões?
As principais exigências decorrem do desejo e da necessidade de mudar de forma estrutural e radical o modo de vida imposto pelo sistema capitalista patriarcal e colonial, pois só assim será possível travar a ação de uma instituição servil aos seus interesses.
Como medidas emergenciais, é necessária a dissolução das forças especiais da polícia em geral e das Forças Armadas, por serem os principais responsáveis por cometer ações que sistematicamente violam os direitos humanos da população.
Além disso, deve haver um verdadeiro julgamento e punição, não só para todo o alto comando corrupto das Forças Armadas, mas também para todos os responsáveis que fizeram e ainda fazem parte da violência política estatal, que inclui desde a polícia e os militares à Presidência, ministros, prefeitos e governadores, além dos grandes empresários que fizeram parte do tecido do poder e fomentaram a violência contra os setores populares.
É preciso estabelecer um modelo popular de autodefesa, que, por um lado, consiga gerar a proteção do povo para que continue se organizando e lutando, somado à defesa de seus interesses coletivos que estão em contradição com os paramilitares, especialmente aqueles ligados ao negócio florestal, ou o tráfico de drogas ligado a cartéis e a corrupção das próprias forças armadas.
Portanto, é necessária uma mudança na doutrina interna que perpetua a defesa dos interesses das elites, e a abertura aos setores populares, que ao ter acesso a maiores conhecimentos técnicos permitam a qualificação de uma autodefesa popular e gerem mecanismos para diluir tais tarefas nas grandes maiorias.
Em que medida as atuais mobilizações e debates em torno da nova Constituição podem mudar o cenário da luta das defensoras e defensores?
A capacidade é muito limitada, pois esse processo de Assembleia Constitucional, de um lado, é o mecanismo que o próprio sistema (corrupto e questionado pelas grandes maiorias) se equipou para evitar sucumbir e cair como estrutura. Ou seja, se não conseguissem processar a rebelião de outubro de 2019, o sistema político institucional poderia ter caído, o que implicava não só a presidência liderada por Sebastián Piñera, mas também o parlamento, espaço onde se encontram os acordos gerais entre os setores políticos, formalidades também vinculadas aos grandes capitais do Chile. Em outras palavras, a institucionalidade atual estava abalada e, portanto, a estrutura formal do consenso democrático representativo liberal instalado pelos setores da burguesia e em geral do bloco dominante estava em questão.
Por outro lado, essa Assembleia nos remete aos pactos da antiga concertação com a própria ditadura, pois ao mesmo tempo que tenta se mostrar um espaço gerador de mudanças, ainda que superficiais, mantém pactos de impunidade, e permite a repressão, a militarização nos setores populares e no Wallmapu, a violência política institucional continua a ser perpetuada e a prisão política continua a existir.
Sinal disso é que a primeira semana de operação, em que uma parte dos setores da esquerda institucionalizados no processo convencional, exigia garantias mínimas para funcionar, como a liberdade dos presos políticos, acabou com a militarização do Wallmapu, entre outros. E nessa mesma semana unidades prisionais foram invadidas e alguns detentos políticos aparelharam, foram espancados e tiveram seus pertences destruídos, e também o weichafe de uma organização autônoma Mapuche foi executado pelas forças policiais, fatos que ficaram em segundo plano na questão constituinte.
Ou seja, se a questão dos direitos humanos fosse vital para dar um salto histórico, a Convenção, como suposto órgão suprainstitucional, não só exigiria certas garantias de forma simbólica, mas também esperaria que elas ocorressem na realidade, fato que se verifica que não ocorre.
Por outro lado, as discussões mais profundas sobre o papel ou existência da polícia e das forças armadas são um tanto mornas ou de muito pouco peso em relação à profundidade da crise que estamos lidando. Na discussão sobre os aparatos de inteligência, sobre a existência ou não da referida polícia, a mudança de paradigma nunca poderá ser aprovada em relação ao que foi anteriormente indicado, pois é necessário ⅔ da maioria para chegar a acordos de mudança, para as quais é necessário para atingir pontos muito “líquidos” ou rasos, uma vez que devem aceitar para concordar com setores da própria ex-concertação.
Da mesma forma, percebe-se que as próprias partes que integram a Assembleia Constitucional olham para o lado e não tratam a violação dos direitos humanos de forma real, há muito tempo e até agora nada mudou e são essas mesmas estruturas que lideram dentro da Assembleia.
Por fim, e em um caso hipotético, se assumirmos que na proposta da nova Constituição há uma mudança radical na polícia e nas forças armadas, isso também vai gerar uma pressão concreta na realidade, o que poderia estabelecer um cenário de movimento de tropas e a defesa corporativa dos interesses desses grupos que fazem parte do tecido do poder. E se os povos em luta não se prepararem, poderíamos estar falando de uma contraofensiva mais violenta e aguda por parte desses setores que não permitirão que o paradigma atual seja mudado, não só porque seus interesses estariam em jogo, mas o interesse dos grandes capitais seria igualmente questionado e esses setores, os grandes grupos econômicos, não hesitarão, como têm demonstrado historicamente, em defender seu modelo.
[1] Segmento do movimento Mapuche que reivindica direitos tanto na perspectiva cultural e econômica quanto política e a recuperação de seus territórios originários tomados pelo Estado em diferentes períodos desde a colonização.
[2] Termo do idioma Mapudungun que designa quem faz a luta.