Repórter vai a Caarapó, no Mato Grosso do Sul, e colhe depoimentos e imagens que mostram as circunstâncias absurdas da prisão de Ambrósio, 70 anos, e a violência dos jagunços contra os Guarani-Kaiowá
Texto e fotos Renan Antunes de Oliveira, da Agência Pública
Faz só uma semana que Ambrósio está no presídio de Caarapó, e a fama dele não para de crescer: de roceiro e de xamã de seu povo, virou herói e mártir para os 9 mil Guarani-Kaiowá da reserva Tey’i Kue, no sul do Mato Grosso do Sul.
No domingo 26 de agosto, nuns grotões quase na fronteira com o Paraguai, ele enfrentou apenas com reza forte a tropa de choque da PM: levou cinco tiros de balas de borracha e foi jogado numa cadeia, onde está incomunicável desde então.
Ambrósio é um líder espiritual. A polícia do Mato Grosso do Sul (MS) sustenta que ele, sozinho, atacou a soldadesca com um facão, quando então foi contido pelos tiros. A versão oficial balança quando se vê a sua única foto conhecida: Ambrósio cercado de alunos da rede municipal indígena, ensinando a criançada a colher, apoiado num cajado.
O xamã é um velhinho frágil, de apenas metro e meio de altura. Só fala guarani. Quem o conhece atesta que tem dificuldades para caminhar. Brandir um facão parece fora de suas possibilidades.
O que as testemunhas indígenas da cena viram foi o velhinho ralhando com os soldados, antes de se esconder sob o trator e sair baleado. Seria só mais uma escaramuça da permanente luta dos índios pela retomada de suas terras ancestrais, se não fosse a mão pesada das autoridades contra o xamã.
Ambrósio logo se transformou num embaraço para o governo do estado.
O Ministério Público Federal (MPF) requisitou às forças policiais estaduais imagens e documentos referentes à operação e instauração de inquérito pela Polícia Federal. “A pertinência da requisição decorre da atribuição constitucional de competência federal para apurar disputas fundiárias relacionadas aos Povos Indígenas”, diz o ofício do MPF, cobrando o governo do estado por meter sua tropa numa área de competência federal.
O incidente que levou a PM a invadir a aldeia foi uma gota no oceano. Para socorrer quatro vigias com medo dos indígenas e uma roça de melancias na sede da fazenda, o governo montou uma gigantesca operação militar.
As autoridades estaduais trataram o caso como uma invasão indígena de propriedade privada a exigir repressão imediata, despachando as tropas. O secretário de Justiça foi ao local para “dar suporte à operação” de salvar a sede da fazenda.
Detalhe: por ser uma das fazendas mais antigas da região, a sede da Santa Maria é simbólica para os produtores rurais que brigam para permanecer em terras indígenas. Eles não querem entregá-la aos Guarani, por isso esperneiam na Justiça e com a jagunçada.
Ela veio sendo reduzida de 55 mil para seus atuais 3 mil campinhos pelos próprios Guarani, que retomaram as redondezas, menos a sede.
A resistência Guarani e Kaiowá
A Funai já concluiu os estudos que reconhecem a Santa Maria como área indígena, mas desde a queda da ex-presidente Dilma Rousseff foi suspenso o processo de demarcação. No vazio, os fazendeiros foram à Justiça pedir a anulação do reconhecimento.
“Queremos retomar as casas da sede não pelo valor, mas pelo que significou em décadas de exploração”, ensina Celso, o cacique da Tey’i Kue.
A confusão começou na linha imaginária que separa a casa-grande da Santa Maria e a reserva Tey’i Kue, que a engolfa, hoje cravejada de malocas, entre elas a do xamã. Lá pelas 9h daquele domingo, a menina Janiele, da maloca da dona Maria, estava numa roça procurando uma melancia, quando os vigias da sede da fazenda dispararam foguetes de artifício e tiros de verdade contra ela.
Ela se jogou no solo e sumiu.
Mais tarde, Janiele contou, em guarani: “Ouvi o barulho e vi alguém dando tiros por baixo de um carro Hilux, me joguei no chão e sai rastejando”.
Dona Maria estava em casa quando ouviu o primeiro “pá-pá” das armas: “Olhei na direção da Santa Maria e não vi mais a menina, achei que ela estava morta”, contou, na sexta, dia 31, ainda agitada, com a mesma emoção daquele domingo.
O ataque à menina e a gritaria de dona Maria mobilizaram centenas de indígenas. Eles já saíram das ocas das proximidades com orelhas em pé.Em seguida, correram para a sede da fazenda. A essa altura a notícia da “morte” de Janiele era dada como fato consumado.
Começaram a bater boca com os jagunços: Giltinho, Milton, Márcio e Paulo (nenhum quis dar entrevista). Os indígenas não sabem qual deles atirou contra a menina.
Foi em algum momento dessa hora que Ambrósio se juntou aos seus, rezando forte. Aí eles se moveram como uma onda para cima dos jagunços, exigindo a menina sã e salva. Apavorados, os jagunços se trancaram na casa-grande e chamaram a Polícia Militar do MS e o temível DOF, o destacamento federal de fronteira, também mantido pelo MS, quase 200 homens.
A PM chegou em menos de 30 minutos para resgatar os quatro brancos ameaçados por um número de indígenas que varia, de acordo com a fonte, entre 20 e 50, no que seria uma tentativa de invasão.
As imagens da PM são pífias.
Nelas, não se vê nenhuma agressão, só o ronco do helicóptero. E um número desproporcional de soldados em relação aos indígenas.
Lá pelas tantas, Janiele se levantou da grama onde estava rastejando. Avisou que estava viva e correu para a segurança de sua oca. Mas era tarde demais. Na ação das autoridades, o caso já estava oficialmente declarado como invasão de propriedade privada, não uma batalha por melancias.
E quando a tropa de choque invadiu só havia um indígena dentro do perímetro da sede, ainda assim fora da casa-grande. Adivinharam: o xamã Ambrósio, que não conseguiu correr como os outros. Sempre murmurando suas rezas, tentou se esconder embaixo de um trator.
Levou aqueles tiros de borracha, um atrás de cada joelho, um na coxa direita, outro no braço direito. Arrastaram o velhinho preso, sem nem saber o nome dele: escreveram no boletim de ocorrência que se chama Ambrósio Alcebíades.
É Ambrósio Arcibide. Da etnia Kaiowá. Nascido em maio de 1948. Aposentado com um salário mínimo rural.
Os indígenas que tentaram resgatá-lo foram contidos por guardas armados de escopetas e protegidos por escudos, nesse caso desnecessários, porque nenhuma flecha foi lançada contra o pelotão.
O xamã baixou direto ao presídio de Caarapó, entre bandidos comuns.
Ficou incomunicável. Por sete dias, até a tarde do domingo em que escrevo esta reportagem numa lan house em Dourados, o velhinho não pode ver o irmão, Tadeu, nem os netos – nem os caciques da aldeia.
Por quê? “Se um de nós for lá sozinho, será preso e acusado dos mesmos crimes”, explica o irmão.
“Pra gente ir lá precisamos da proteção de um procurador federal, a polícia [local] não respeita ninguém. Ambrósio é o refém deles. Querem pegar mais um de nós”, explica o líder Otoniel.
Se ninguém pode ir ao Ambrósio (este repórter teve acesso negado ao presídio), fomos à casa dele. É um barraco feito com cascas de árvores – quem se encosta na parede vê a sede da Santa Maria ao fundo. A família está em choque com a prisão – todas as mulheres disseram em guarani que querem ele de volta no pátio, onde tomam conta dele.
Pode demorar: o delegado da Polícia Civil de Caarapó o acusou de roubo, cárcere privado e resistência à prisão. O advogado Handerson Santos, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI, órgão da Igreja Católica), pediu o relaxamento da prisão.
O caso foi às mãos de um juiz federal em Dourados. A Defensoria Pública estava esperando a soltura do xamã para os próximos dias. Na segunda-feira, o batalhão de choque voltou às ocas das redondezas.
Foram à maloca do xamã em busca de qualquer coisa que pudessem recolher como prova de roubo – saíram de mãos vazias, desapontados com a pobreza franciscana de Ambrósio.
Ali perto, a tropa pegou de surpresa um bando de mulheres e crianças numa sombra. Arrombaram portas, reviraram tudo e foram embora deixando o aviso sinistro de “vamos voltar”.
Exército do futuro
O “naco Santa Maria” da aldeia está cercado por terras reconhecidas como Terra Indígena. É questão de tempo para ser engolido. A reserva Tey’i Kue tem 2 mil crianças em dezenas de escolas, com professores Guarani. A nova geração está sendo educada para retomar as terras em disputa. Uma aula de teatro tem encenação sobre o conflito. A semana de leitura tem cartazes sobre demarcação.
A criançada sabe na ponta da língua como argumentar em defesa da causa. A Santa Maria ainda pertence a Benedito Penteado, que vive em São Paulo. Segundo o Sinrural, ele arrendou mil alqueires por 35 sacos de soja por alqueire, que o arrendatário transforma numa renda de R$ 500 mil anuais para o fazendeiro.
Odil Bandeira, diretor do sindicato, que congrega 250 fazendeiros, fez a conta dos alqueires e explica com simplicidade: “Quem perder a terra perde a grana”.