Em debate com movimentos sociais e intelectuais gaúchos, professor sustenta: é tolo tentar reconstruir a utopia a partir do velho mundo do trabalho
Por Marco Weissheimer | Sul21
Em entrevista concedida ao Brasil de Fato, em novembro de 2018, Paulo Arantes, professor de Filosofia aposentado da Universidade de São Paulo (USP), definiu assim o que chamou de “encrenca brasileira”: “abriu-se a porteira da absoluta ingovernabilidade no Brasil”. Nos primeiros dias de janeiro de 2019, Paulo Arantes participou, em Porto Alegre, de uma conversa com um grupo de lideranças políticas, sindicalistas, professores universitários e representantes de movimentos sociais sobre o cenário político que se abre no país a partir da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado. O ponto de partida dessa conversa foi o detalhamento desta noção de ingovernabilidade que, na avaliação de Arantes, é um fenômeno que não se restringe ao Brasil.
Segundo ele, o Brasil tornou-se ingovernável não no sentido mais tradicional da palavra, de que não possa haver um governo e instituições formalmente funcionando, mas sim em um sentido mais profundo: falta o que governar, o que vai se governar exatamente? Em sua reflexão sobre as raízes dessa governabilidade, Paulo Arantes recua até 1964, quando a democracia foi interrompida no Brasil por um golpe de Estado. Para ele, a ideia de um que país periférico como o Brasil pudesse se tornar uma democracia com desenvolvimento social “foi rifada em 64”. Essa inviabilidade vai se tornar ainda mais evidente com a eleição de Collor, em um momento em que o capitalismo vivia um processo de reestruturação produtiva em nível internacional.
“A partir da redemocratização, violência passou a ser o nexo social central”
Neste momento de “catástrofe nacional”, no entanto, assinala Arantes, emerge um partido de massas, renovando as energias utópicas na sociedade brasileira. Para ele, porém, essa novidade, que foi a criação do Partido dos Trabalhadores, ignorou o diagnóstico da inviabilidade de construção de um projeto nacional, estabelecido em 64. “Havíamos batido no teto e a lógica era outra. A partir do período da redemocratização, a violência passou a ser o nexo social central”, sustenta. A sociedade estava mudando radicalmente e isso não foi percebido como deveria ser. O PT cresce, obtém sucessivas vitórias eleitorais e começa a irrigar esse “campo catastrófico” (uma sociedade onde a violência vai se tornar o principal nexo social) com dinheiro, via políticas públicas. “Isso ruiu. Não se governa mais. É disso que se trata”, resume.
No Rio de Janeiro, exemplifica, as milícias têm poder suficiente para esnobar os políticos, já administram vastos territórios e fazem parte da ingovernabilidade. Em São Paulo, o PCC (Primeiro Comando da Capital), os evangélicos, os agentes do Estado e os trabalhadores precarizados habitam mundos incomunicáveis. “A única coisa que os reúne é o dinheiro. Tem que circular uma grande massa de dinheiro nas periferias, se não a coisa explode”. Os governos do PT, na opinião do professor, executaram com primazia um conjunto de políticas compensatórias, apoiadas pelo Banco Mundial, mas esse modelo bateu no teto.
“As periferias estão por toda parte”
Na avaliação de Paulo Arantes, não há mais possibilidade de um planejamento estratégico em um país como o Brasil. “Fazemos parte de uma sociedade global que está se periferizando. A diferença entre o Brasil e a França não é mais tão grande. As periferias estão por toda a parte. O mundo inteiro está nestas periferias. Não temos mais uma sociedade salarial. Quem herdar essa massa falida vai governar o quê? “, questiona. Para o professor da USP, o círculo militar que cerca Bolsonaro tem esse diagnóstico em mente. Ele chama atenção para uma recente entrevista do general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), onde ele disse: “se o governo não der certo, a única coisa que a minha geração terá visto dar certo foi o Pelé jogar bola”. A entrelinha dessa declaração, avalia Paulo Arantes é: essa é a última cartada que nós temos. Há um colapso do sistema andamento e precisamos (nós, militares) entrar em campo. E pensam: Se conosco não der certo….
Ele destaca outra marca importante do diagnóstico que os militares fazem sobre a situação do Brasil e do mundo. A maior parte do staff militar de Bolsonaro é formado por veteranos da contra-insurgência, como é o general Augusto Heleno, que comandou a força militar do Brasil no Haiti. “Eles sabem que poder militar depende de industrialização e que não dá mais. Ficamos muito para trás (com o processo de desindustrialização que o país viveu nas últimas décadas). Além disso, eles preveem que vem aí um grande conflito mundial, envolvendo Estados Unidos, China e Rússia, e que o Brasil precisa se realinhar imediatamente. Para eles, há uma Síria do nosso lado, que é a Venezuela, onde a Rússia, a China e outros países já estão presentes. Se a Venezuela explodir, o conflito vai vazar por todas suas fronteiras. Esse diagnóstico explicaria a velocidade com que o novo governo aderiu à agenda política dos Estados Unidos.
“A construção da sociedade do trabalho foi para o brejo”
Como é que a esquerda pode se contrapor a esse cenário? – questiona Paulo Arantes. O início de sua resposta a essa questão: “não é com um programa de 40 anos atrás”. Para ele, a esquerda de um modo em geral e, em especial, o PT, não deu a devida a atenção para as profundas mudanças que aconteceram na sociedade brasileira. “Acabou a utopia varguista da carteira assinada. Não tem mais solução pelo pleno emprego no mundo inteiro. A construção da sociedade do trabalho foi para o brejo”, opina. A direita e a extrema-direita, por outro lado, entenderam muito melhor o que estava se passando, avalia. “A era de direitos humanos pós-guerra fria está encerrada. O renascimento da política se deu com a extrema direita. Ela reinventou a luta política no mundo.”
O corolário desse avaliação, para a esquerda, conclui Paulo Arantes, passa, entre outras coisas, pela atualização do diagnóstico acerca do tipo de sociedade na qual vivemos hoje, com a formação de crescentes periferias ingovernáveis pelo mundo inteiro. Além disso, esse diagnóstico deve vir acompanhado por novas respostas a questões nada singelas, como, por exemplo: o que fazer, do ponto de vista da luta política de esquerda, em uma sociedade onde a violência passou a ser o principal nexo social?