Ivo Poletto
Em tempos de pandemia, a humanidade, mas especialmente os países e regiões castigados por dívidas que sequestram a metade ou mais dos recursos públicos, sentem na carne, no assustador número de pessoas que morrem antes da hora, na tristeza dos seus familiares e amigos/as e na insegurança generalizada, o significado real da injustiça socioambiental e, por isso, os desafios a enfrentar para conquistar a justiça socioambiental.
A pandemia revela o que os poderosos de sempre tentam ocultar em “tempos normais”, isto é, nos tempos em que a dominação ideológica se esmera em difundir a ideia de que miséria e pobreza ao lado de riqueza e ostentação são realidades naturais, expressão histórica do mercado que se autorregula, e que, por isso, passa a maior parte da riqueza para as mãos dos proprietários dos meios de produção, das tecnologias, dos meios de produção, da terra e quase tudo mais. Invadem as mentes, o imaginário e, às vezes, até o coração das pessoas que os mesmos poderosos tornaram “desprevenidas” através do que oferecem e do que renegam nas políticas educacionais e de comunicação, e as contaminam com sua visão da história, levando-as a votar contra suas necessidades e direitos, confiando-se às promessas anunciadas para não serem cumpridas porque sempre faltam recursos para eles por ser “natural e normal” que menos de 1% da população receba em dia, com juros e outras taxas estabelecidas por eles com a conivência dos governantes de plantão, o que os Estados e todos os endividados devem pagar.
A pandemia revela, então, os frutos de 500 anos de dominação colonial, que continuou e foi potenciada nas sucessivas etapas da exploração e dominação capitalista: mercantil, burguesa, agroindustrial, transnacional, liberal, neoliberal… No Brasil, especialmente, tudo deve ser lido ao contrário, seguindo a sugestão sociológica do poeta Patativa do Assaré para entender a realidade do sertão semiárido da Caatinga: aqui o liberal pratica políticas conservadoras, o conservador promove políticas modernizadoras e institucionaliza direitos sociais, a esquerda assume demonstrar que governa melhor do que os capitalistas, a direita se enraíza e colhe frutos de sua ideologia que condena os pobres à pobreza em nome de Deus, a reforma agrária real passa áreas de terra de tamanho imperial a comerciantes, industriais, banqueiros nacionais e estrangeiros, o desenvolvimento econômico tem como base a extração e exportação de bens naturais do subsolo e das monoculturas químicas e transgênicas de solos sem fim…
Por isso e por muito mais, aqui não relatado, as lutas por justiça socioambiental são extremamente desafiadoras e até perigosas. Trata-se de enfrentar, superar e transformar pesadas e violentas práticas de injustiça social e ambiental diretas e institucionalizadas que, nos dias de hoje, parecem regredir às formas ideologicamente grosseiras e absurdas usadas pera “justificar” as práticas da colonização do século XVI. Afinal, de que século são as afirmações de que a terra é plana, de que os povos indígenas não existiam antes da invasão colonial, e por isso, só teriam direitos os que estivessem “pacificamente” nos territórios por eles reivindicados em 1988, que todas as terras devem ser destinadas ao Brasil acima de todos, isto é, aos gloriosos grileiros que limpam as áreas das florestas, dos atrasados indígenas, quilombolas etc. para repassá-las aos heróis nacionais (como os saudou também o ex-presidente Lula!) criadores de bois, produtores de soja, mineradores… Qual a diferença dessas práticas se comparadas ao decreto que tornou território de além mar de Portugal tudo que, antes, era território de povos que foram impedidos de realizar o seu caminho cultural, econômico, político, espiritual até os dias de hoje?
É por isso que aqui o que é apresentado – e mantido! – como “ministro do meio ambiente” declara, em reunião ministerial com o presidente, que a pandemia é uma boa oportunidade, porque a mídia e todo mundo estão ligados só a ela, para ir mudando a “boiada” de normas, decretos, instruções ligados à política ambiental que atrasam a liberação de áreas e causam “insegurança jurídica” aos que se apropriaram de terras na Amazônia, mas também no Cerrado, na Mata Atlântica… sem que a população e o Congresso e Judiciário se deem conta, atrapalhem, impeçam!
Tudo deve ser lido ao contrário, lembram? Pois é, a pandemia está indicando o que se deve fazer para evitar que as injustiças socioambientais, antes e até agora “naturais e normais”, destruam a vida da Terra e a vida na Terra. O que nenhuma política, nem mesmo as revoluções socialistas e comunistas, os estados de bem estar social e as caríssimas e vergonhosamente ineficazes conferências mundiais organizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) conseguiram demonstrar em termos práticos, o novo coronavírus (COVID-19) conseguiu: as energias da Mãe Terra, das pessoas e demais seres vivos, se regeneram com a diminuição da queima de combustíveis fósseis, com da diminuição do mercado mundial, com a diminuição do turismo esbanjador, com a diminuição da circulação de veículos e até de pessoas nas cidades… Junto com isso, demonstrou que o primeiro direito humano e da Terra, o da existência, precisa contar com recursos que o garantam o tempo todo – uma renda básica universal -, pois sem isso, a luta para evitar mortes por fome, sede e falta de espaço adequado para se isolarem exigem a emissão de moedas emergenciais e mais endividamentos. E demonstrou que, na hora “h”, quem garante alimentos é a produção familiar, cooperativa, associativa, de pequeno e médio porte, e não as absurdas monoculturas – produção que caminha na direção da agroecologia. Da mesma forma, sistemas públicos de saúde, de água e saneamento, de moradia, de energia e educação são igualmente necessários o tempo todo.
Resumindo, a pandemia deixou claro que o mercado não ama nem cuida de vida das pessoas e da Terra. Ele se assenta, então, em diferentes práticas de injustiça socioambiental, e a sua superação exige transformações estruturais, por um lado, mas que só serão conquistadas com a libertação de mentes, imaginário e corações da maioria das pessoas. Não se sabe quanto, mas a pandemia já tem sido pedagoga nessa direção, e pode ser transformada em mais uma “palavra e tema gerador”, na perspectiva da “educação como prática da liberdade” do mestre Paulo Freire.
*Ivo Poletto – assessor e mobilizador do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental