“Começamos a escrever a nossa própria modernidade”. Com essas palavras, Fernando Collor de Melo, então presidente do Brasil, assinava – junto com os presidentes da Argentina, Paraguai e Uruguai – o Tratado de Assunção, em 26 de março de 1991, documento fundador do Mercado Comum do Sul (Mercosul).
Conforme consta em seu próprio site oficial, o Mercosul tem como objetivo principal “propiciar um espaço comum que gerasse oportunidades comerciais e de investimentos mediante a integração competitiva das economias nacionais ao mercado internacional”.
30 anos depois, a palavra modernidade, dita por Collor, porém, parece se aplicar exclusivamente ao capital. “O bloco nasce como nome de ‘mercado comum’, ou seja, já diz em seu nome que se propõe ao favorecimento do mercado. E os grandes beneficiados foram a indústria automobilística e o agronegócio”, observa a economista Sandra Quintela, articuladora da Rede Jubileu Sul Brasil.
Quintela acredita que o nível de fortalecimento ou vulnerabilidade do bloco, ao longo dessas três décadas, apresentou variações de acordo com os governos de cada momento histórico. “Houve a onda da redemocratização, a onda mais conservadora, o período progressista, que teve avanços em algumas agendas como a livre circulação de trabalhadores e no capítulo de direitos humanos, depois veio o governo Macri retomando a agenda neoliberal e agora, mesmo a Argentina com um governo de viés mais progressista, temos esse desgoverno horroroso no Brasil, que trabalha diariamente para acabar com a integração dos povos”, afirma.
Avaliação semelhante à da economista tem Graciela Rodriguez, do Instituto EQUIT – Gênero, Economia e Cidadania Global. “Não se pode falar dos 30 anos de uma forma homogênea. Houve períodos de implementação crescente do neoliberalismo na região, com um interregno dos anos 2000 em que vários países tiveram os chamados governos progressistas, que promoveram diminuição das desigualdades, e agora a retomada do aumento da pobreza com o aprofundamento do programa neoliberal, por meio de uma série de políticas recessivas”, analisa.
Esse cenário é projetado também por organismos multilaterais. De acordo com a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a Argentina e o Brasil – duas principais economias do Mercosul – serão os países com maiores índices de aumento da pobreza, 10,8% e 7,7%, respectivamente.
Pandemia e as possibilidades perdidas
Num momento em que a principal economia do bloco se consolida como epicentro da pandemia, com mais de 300 mil mortes registradas, as especialistas compreendem que o Mercosul poderia ter um papel relevante na adoção de políticas regionais articuladas de enfrentamento à Covid-19.
“Há muito que falamos sobre a possibilidade de uma indústria farmacêutica em comum, que reunisse as melhores inovações tecnológicas, para pensar até em doenças e situações de epidemias e pandemias que atacam a região de uma forma mais forte devido à pobreza. Esse seria o momento para fortalecer as várias instituições de pesquisa científica, tecnológica e farmacêutica. O Mercosul poderia ser uma alavanca para investimentos que olhassem em particular a região e a inovação tecnológica que está sendo totalmente preterida, sobretudo no caso do Brasil”, acredita Rodriguez.
Para Sandra Quintela, um bloco com as características do Mercosul teria condições de “facilitar a fabricação de vacinas, a importação de insumos, estabelecer políticas fitossanitárias de fronteiras, promover o intercâmbio de profissionais de saúde, fazer transferências e trocas tecnológicas. Ou seja, poderia de um modo geral atuar de forma conjunta no enfrentamento da pandemia”.
Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina da USP, Nastasia Barceló acredita que no contexto de crise econômica e sanitária os países do Mercosul perdem a oportunidade de fortalecer as economias nacionais e uma perspectiva de longo prazo em termos de desenvolvimento. “Os Estados membros do Mercosul, cada vez mais orientados por uma perspectiva neoliberal, propõem negociar separadamente. Uma política que tende, por um lado, a aprofundar a dependência económica e, por outro, a enfraquecer o projeto político autônomo dos processos de integração deste lado do Atlântico”, escreveu, em artigo recente no site Observatorio del Sur Global.
O que está por vir com o Acordo Mercosul-UE
“O Mercosul da integração dos povos, que tanto sonhamos, está cada dia mais distante. Esse Acordo é extremamente danoso para os povos do Cone Sul, para a nossa soberania, para o desenvolvimento tecnológico e para o meio ambiente, já que o agronegócio segue como beneficiado”.
Com essa reflexão, Sandra Quintela acredita que o Acordo Mercosul-União Europeia – já aprovado, mas ainda aguardando a assinatura dos parlamentos dos dois blocos regionais – tende a aprofundar o cenário de vulnerabilidade dos povos e ampliar as injustiças socioambientais nos países que formam o Mercosul.
Na mesma perspectiva de Quintela, Graciela Rodriguez entende que o Acordo Mercosul-UE “pode agravar a situação das desigualdades porque se trata de um acordo assimétrico, muito destoante, em que os países da Europa irão exportar para a região produtos manufaturados, enquanto a principal oferta do Mercosul vai ser justamente sua produção primário-exportadora de agricultura, pecuária e minérios”.
Para Graciela, que compõe também a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP) e a Rede de Gênero e Comércio, uma das consequências do Acordo será “o agravamento de todo o processo de desindustrialização que os países do Mercosul estão vivendo e isso vai ter um grande impacto no emprego, na precarização laboral e no nível dos salários, inclusive impacto de gênero porque os empregos com melhores salários de mulheres estão justamente no setor industrial. Então, o efeito sobre a vulnerabilidade e a pobreza será alto”.
O alerta feito por essas especialistas é algo apontado em estudos recentes realizados por instituições de pesquisa tanto da Europa quanto da América do Sul. Como exemplo, um relatório da London School of Economics (LSE) prevê, dentre outros aspectos, que o acordo reduzirá o Produto Interno Bruto dos países do Mercosul enquanto aumentará o da União Europeia, além de ampliar o desemprego na Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, especialmente nos setores automotivo, de máquinas, químico e farmacêutico.
O olhar crítico sobre os impactos do Acordo Mercosul-UE é compartilhado também por mais de 60 organizações sociais latino-americanas e europeias que, em carta aberta divulgada em novembro do ano passado, denunciaram que “os negociadores [do Acordo] foram guiados por uma fé cega no livre comércio, sem analisar os impactos integrais de todos os capítulos deste acordo sobre a saúde, ecossistemas, mundo do trabalho, direitos humanos, mulheres e dissidências”.
As disputas em torno do Mercosul
Vale lembrar que além dos quatro países fundadores, a Venezuela integra o bloco desde 2012, mas teve a suspensão de todos os seus direitos da condição de Estado Parte do Mercosul em 2017 por “quebra da ordem democrática”, algo que tem ocorrido constantemente no Brasil, porém, sem qualquer posicionamento do Mercosul a respeito.
Ao assumir a presidência temporária do Mercosul em dezembro do ano passado, o presidente da Argentina, Alberto Fernández, defendeu a entrada definitiva da Bolívia como Estado Parte do Mercosul. Assim como a Bolívia, atualmente, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname são Estados Associados do bloco, o que garante direito a voz, mas não a voto, nos fóruns e órgãos decisórios do bloco.
Na mesma ocasião, o governante argentino disse que: “não há integração regional bem-sucedida com integração social fracassada, nem economia regional robusta com economias internas subnutridas. É hora de superar a globalização da indiferença e construir a universalização da solidariedade”.
No sentido oposto, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, tem defendido a flexibilização de acordos do Mercosul e manifestado posicionamentos sobre a própria existência do bloco, especialmente a partir da eleição de Fernández na Argentina. No final de 2019, em entrevista ao Uol, Araújo declarou que “ Mercosul não é apenas um nome, uma bandeira hasteada. Se o projeto é desvirtuado, precisa ser repensado (…) Apostamos no Mercosul e isso vinha dando certo com a Argentina do Macri. Não podemos dizer que é um projeto inquestionável, que vai durar para sempre, aconteça o que acontecer”.
Para a advogada Nora Pérez Vichich, professora da Universidad Nacional Tres de Febrero, na Argentina, o protagonismo da sociedade civil dos países da região é questão fundamental na perspectiva de futuro do Mercosul. “A sociedade civil, nem sempre suficientemente ouvida nos processos de integração regional, deve propor, estimular e participar no debate sobre a cidadania, pois os cidadãos são os destinatários necessários do justo ou injusto resultado das ações. Em todos os âmbitos da integração regional, é importante retroalimentar os processos de participação e intercâmbio, tanto para modelar conceitualmente o objetivo pretendido, como para reforçar uma das formas de promover a cidadania a partir da prática, com vista a alterar o crônico ‘déficit democrático’ nos espaços de integração regional”, escreveu, em texto publicado por ocasião dos 30 anos do Mercosul.