Há um abismo conceitual entre o discurso do presidente em prol dos direitos indígenas e a posição técnico-jurídica da Advocacia-Geral da União do próprio governo Lula
Por Cleber César Buzatto, do CIMI Regional Sul, organização membro do Jubileu Sul Brasil
Finalizado o Acampamento Terra Livre (ATL) 2023, no dia 28 de abril, ocasião em que o presidente Lula, presente no evento, assinou, dentre outros atos administrativos, meia dúzia de decretos de homologação de terras indígenas e manifestou publicamente a intenção de demarcar o maior número possível de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, é urgente que o governo federal unifique a posição favorável aos povos indígenas, expressa pelo presidente da República, em seus diferentes setores e espaços de atuação.
Sobretudo, neste momento, urge a alteração do posicionamento da Advocacia-Geral da União (AGU) naquele que é o principal e mais importante processo judicial relativo ao direito fundiário desses povos, o Recurso Extraordinário 1.017.365. Com caráter de repercussão geral, o reinício do julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) está previsto para ocorrer no dia 7 de junho próximo.
Desde o início do julgamento do caso, em agosto de 2021, em pleno governo Bolsonaro, a AGU defende a tese reducionista, inconstitucional e anti-indígena do famigerado marco temporal. Passaram-se quatro meses do início do governo Lula sem que tenha havido qualquer alteração da posição da AGU no bojo do Recurso Extraordinário em questão e sequer a revogação do Parecer 001/17 da mesma AGU, que obriga toda a administração pública direta e indireta aplicar a tese do marco temporal.
Mostra-se flagrante, portanto, a existência de um verdadeiro abismo conceitual entre o discurso público do presidente Lula em prol do direito dos povos às suas terras e a manifestação técnico-jurídica da AGU do próprio governo Lula, que vai na direção ontologicamente contrária à do atual presidente da República. Em síntese, enquanto Lula prega e defende política e publicamente a demarcação das terras, a posição da AGU do seu governo inviabiliza, frontal e estruturalmente, a implementação desse direito fundamental dos povos originários do Brasil.
A adequação da posição da AGU à altura do que tem defendido o atual presidente da República, ou seja, a inconstitucionalidade do marco temporal, é urgente e tem prazo exíguo para ser colocada em prática: precisa ser feita antes do reinício do julgamento acima referido, sob risco de perder o prazo e referendar, como posição oficial do atual governo, uma postura contrária aos direitos indígenas no mais importante debate sobre o tema desde a Constituinte.
A responsabilidade técnica por tal alteração de posicionamento no bojo do processo judicial mencionado é da AGU. No entanto, a responsabilidade política, caso isso não ocorra, em última instância, seria do próprio presidente Lula.
Sendo assim, a inimaginável hipótese da não harmonização da posição da AGU à de Lula nessa disputa judicial emblemática e estruturante para todos os povos indígenas do Brasil teria, necessariamente, o condão de arrastar o discurso político do atual presidente à vala das práticas imundas e anti-indígenas aberta pelo seu antecessor.
Lula precisa estar atento e agir com brevidade e firmeza frente a essa situação, caso queira manter a coerência e o compromisso tão esperados pelos povos indígenas e seus aliados no Brasil e no mundo.