O presidente eleito, Jair Bolsonaro, alicerçou toda campanha em discursos polêmicos, perigosos e antidemocráticos. O que isso pode significar no dia a dia do governo eleito?
Por Roberto AntonioLiegott | Cimi – Regional Sul
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, alicerçou toda sua campanha eleitoral em discursos polêmicos, perigosos e antidemocráticos. Pretendia, com isso, se distanciar do que se convencionou chamar de político tradicional, embora ele seja, dentre todos os candidatos, o mais tradicional. A estratégia surtiu o efeito desejado e Bolsonaro passou a ser, aos olhos de boa parte da população, expressão do novo na política. Toda a palavra que proferia, por mais confusa, problemática ou carregada de preconceito que fosse, acabava em aplausos e pessoas as discutiam nas rodas de conversas. Foi o que lhe credenciou para: bradar e propor a intolerância contra minorias étnicas, de gênero e sexualidade; classificar os direitos humanos, sociais e trabalhistas como exagerados e, portanto, as pessoas terão que optar entre ter direitos ou ter emprego; propor e estimular a criminalização de ativistas sociais, ambientais, indigenistas e de políticos que lhe faziam oposição; reforçar o fundamentalismo religioso nas relações familiares e educacionais; propagar a ideia da liberalização de armas letais aos latifundiários para que estes reajam a possíveis invasões; propor a diminuição da maioridade penal de 18 para 16 anos como forma de coibir o crime; apostar na militarização e no uso da repressão na segurança pública; sugerir o excludente de ilicitude para avalizar a execução de pessoas por policiais, livrando-os de investigação e posterior responsabilização criminal; incentivar e avalizar a exploração indiscriminada dos recursos da natureza como alternativa ao desenvolvimento no campo e na floresta; conduzir processos de privatização dos bens públicos e a priorização, na economia, da livre especulação financeira através das grandes corporações.
E sempre é bom lembrar que o então candidato Bolsonaro não caiu do céu, não surgiu com um passe de mágica. Ele foi sendo apresentado aos poucos e no decorrer dos últimos quatro anos tornou-se a solução para enfrentar os males da sociedade brasileira. A política e os políticos foram demonizados e viraram sinônimos de corrupção e, desse modo, ele acabou, em certa medida, sendo constituído como a melhor alternativa diante da desqualificação dos governos e do parlamento.
Para os povos indígenas, seus direitos, seus projetos de vida e de futuro, o governo de Jair Bolsonaro representa um grave perigo, porque propagou o ódio, o preconceito, a violência e desdenhou das histórias, das lutas e da autonomia indígena
Junto com a demonização da classe política, desencadeou-se uma intensa perseguição ao Partido dos Trabalhadores (PT), com consequente criminalização de seus integrantes. A grande mídia tornou-se propulsora das investigações contra corruptos e anunciava diariamente – quase sempre ao vivo – as quebras de sigilos telefônicos, os conteúdos dos inquéritos e dos processos que levavam à prisão e condenação de dezenas de personalidades da política e do empresariado. A frente desse esquema de combate à corrupção, denominado Lava Jato, estão o Judiciário, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, as empresas de TV, além dos grandes jornais e revistas de circulação nacional. A narrativa usada, tanto nos processos judiciais como na mídia, é a da teoria do fato, sustentada por delações premiadas, estas relatadas pelos corruptores, os empresários que, a pretexto de manterem suas empresas em funcionamento e ficarem fora da cadeia, delatam aqueles que os beneficiaram nos governos anteriores, prioritariamente os governos Lula e Dilma – outros governos, desde a ditadura militar, foram relacionados em delações.
Paralelo à guerra supostamente deflagrada contra a corrupção, seguiram-se as tratativas na política e Bolsonaro, sem muito respaldo partidário à época, ainda como deputado federal pelo Partido Progressista (PP), passou a fazer incursões pelos estados, notadamente aqueles onde os conflitos fundiários, imobiliários e de segurança pública eram os mais latentes: Mato Grosso do Sul, Rondônia, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Com seus posicionamentos polêmicos e ressentidos contra sem terras, indígenas, quilombolas, gays, lésbicas, pessoas trans, mulheres, defensores do meio ambiente e, ainda, contra a corrupção, acabou angariando apoio e gerando audiência para os programas de rádio, TV e internet. Ele conseguia, com o discurso raivoso, a adesão de uma camada da sociedade que pensava como ele, mas silenciava, e que então passou a encontrar ressonância em seus pronunciamentos. Bolsonaro estimulou a imaginação de setores sociais e fez vigorar a ideia de que se poderia agir com violência à revelia dos preceitos legais e ainda que as pessoas precisavam se armar contra os inimigos, tal como ele mesmo afirmou em seus discursos, conclamando, ao mesmo tempo, para a defesa da pátria, da ordem, da disciplina, da família, da escola sem partido e do seu Deus, que, segundo ele, estaria acima de tudo.
Todos esses discursos se fortaleceram na pré-campanha eleitoral e, já naquele momento, se podia identificar três projetos em disputa: um capitaneado pela direita, que pretendia se consolidar no poder depois do afastamento de Dilma Rousseff, mas que não obteria êxito porque compunha com o governo corrupto de Temer; um de extrema direita, com evidente perspectiva fascista, coordenado por Bolsonaro; e, por fim, uma composição mais de centro-esquerda, coordenada pelo PT/Lula, que avaliou os cenários de disputas e considerou que num primeiro momento não confrontaria com Bolsonaro, pois ele tenderia a ser o melhor candidato para derrotar no segundo turno. Neste contexto, o ex-presidente Lula, dentro do jogo de forças políticas, sociais e jurídicas, acabou ainda mais fragilizado, por ter sido denunciado, preso e condenado em primeira e segunda instâncias. Bolsonaro, de modo muito perspicaz, se desvinculou de seu partido (PP), envolvido até as entranhas em corrupção, e decidiu concorrer às eleições pelo PSL. Mas, não se pode deixar de referir que Bolsonaro era partícipe dos esquemas do PP e, quase como numa metamorfose, apareceu como político independente e se construiu como imaculado, liberto de pecados, chegando a ser tratado, depois da estranha e não bem explicada facada, como o mito.
Os discursos de Bolsonaro contra as consideradas minorias, contra os direitos humanos, indígenas, quilombolas, pobres e propagando a autodefesa através do porte de armas – como alternativa no combate ao que chamava de “bandidagem”, pelo encarceramento de jovens, especialmente aqueles das periferias e negros – recebem grande adesão no país. As redes sociais e o whatsapp tornaram-se as máquinas propulsoras das ideias e preconceitos do candidato. Quanto mais pregava a intolerância, o ódio e a anti-política, mais adesão recebia e se consolidava como a única alternativa a respaldar os anseios e expectativas da classe média e das elites. Enquanto Bolsonaro decolava na campanha, os candidatos de direita afundaram e a polarização entre o bolsonarismo e o petismo/lulismo se tornou inevitável.
A partir da definição do PT de que Fernando Haddad seria seu candidato à Presidência, iniciou-se uma guerra de opiniões e de concepções de mundo, estado e democracia. Bolsonaro – depois da reclusão hospitalar em função do episódio da facada – passa a ser referido e reconhecido como o mito, aquele que voltou da morte para salvar o país do comunismo e da corrupção representados pelo PT. A guerra declarada por Bolsonaro foi sendo sustentada em nome da “Pátria”, ameaçada pelo comunismo; de “Deus” patriarca, severo e punitivo (Antigo Testamento) cultuado nas celebrações pentecostais; e da “Família” tradicional na qual o pai é o centro e os demais integrantes submissos a ele. E para lutarem nesta guerra, a campanha de Bolsonaro decidiu que convocaria “soldados” através das redes sociais, de celebrações, de cultos e de pregações realizados dentro de igrejas, de quartéis das Forças Armadas e da polícia; nas redes de comunicação e na mídia hegemônica que, aos poucos, foi sendo convencida pelo clamor de parte do eleitorado mais conservador, pelas decisões do Poder Judiciário e pelo lobbying da Maçonaria de que a alternativa para o país – apesar dos riscos a democracia – era Bolsonaro, o mais palatável no contexto da política, da economia e da institucionalidade do Brasil.
A vitória do candidato da extrema direita acabou sendo inevitável. Agora, depois dela, há a necessidade de readequar as análises, avaliações e expectativas no tocante às ações em defesa dos direitos humanos no Brasil. Estes serão duramente atacados. A tendência – pelo que se observou no decorrer da campanha eleitoral, mesmo antes dela, e agora, depois de Bolsonaro eleito – é de que alguns seres humanos e seu habitat deixarão de ser sujeitos de direitos para tornarem-se objetos de perseguição e especulação. Os discursos de ódio, preconceito e desinformação parecem compor o roteiro das políticas de estado. Não há dúvida sobre o que eles pretendem no governo, a partir de 01 de janeiro de 2019: desregulamentar direitos individuais e coletivos, frutos de luta de gerações anteriores, à liberdade, à sexualidade, à religião, à educação, à opção política, ao emprego e às identidades; expropriar a terra, seus mananciais e biomas, a ecologia, as energias, os animais, as águas e os minérios. Não medirão esforços neste sentido e não irão dialogar, não pretendem discutir e muito menos suportar divergências quanto aos seus intentos no poder. Foram legitimados e suas ambições totalitárias reconhecidas como alternativas ao Brasil. É neste contexto que se deve pensar e planejar as lutas e a resistência.Não há, portanto, o que se esperar deste novo governo que será composto predominantemente por parlamentares que, em suas trajetórias políticas, têm manifestado posições racistas, homofóbicas, fundamentalistas; especialistas ou “técnicos” vinculados aos empresários que ganham dinheiro com a fé (pastores de igrejas pentecostais); militares (alguns deles que cultuam como ídolo um torturador do regime ditatorial); ruralistas, especialmente aqueles da antiga UDR (União Democrática Ruralista) e CNA (Confederação Nacional da Agricultura) que historicamente se manifestam contra indígenas, sem terras, trabalhadores rurais, contra os direitos coletivos das minorias e contra as leis de preservação ambiental; e por empresários ligados ao sistema financeiro especulativo.
No que tange aos povos indígenas, de modo mais incisivo, o futuro presidente da República anunciou que “não demarcará nenhum centímetro de terra” e fará, ao invés disso, a revisão das demarcações realizadas pelos governos anteriores. Enfatizou que pretende, durante o seu governo, fazer com que os “índios ganhem dinheiro vendendo as terras”, num total descompromisso com as normas da Carta Maior do país que estabelece que terras indígenas são patrimônio da União, portanto, são indisponíveis e não podem ser vendidas. Disse ainda, antes e durante a campanha, que os índios não necessitam de terra, mas precisam ser integrados à comunhão nacional, rememorando as teses genocidas e integracionistas do regime militar. O presidente, em síntese, anunciou que vai impor a revisão dos direitos estabelecidos pelos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988.
Tão grave quanto as declarações proferidas contra os direitos dos povos indígenas são as manifestações do presidente que incentivam os setores ruralistas a fazerem oposição as demarcações de terras e, como consequência, acaba por incitar a violência contra lideranças, comunidades e apoiadores da causa indígena. Informações dão conta de que houve aumento dos assassinatos, tentativas de assassinatos, atropelamentos nas estradas, ataques de fazendeiros e seus capangas nas comunidades e a circulação nas áreas de pessoas estranhas e de militares, gerando medo e insegurança. São igualmente preocupantes as declarações do presidente eleito difundindo ameaças aos apoiadores da causa indígena, numa evidente tentativa de intimidar ações e serviços prestados às comunidades e criminalizar aqueles que se colocam na defesa dos direitos constitucionais dos povos, em especial a defesa da demarcação das terras.
Os discursos de Bolsonaro contra as consideradas minorias, contra os direitos humanos, indígenas, quilombolas, pobres e propagando a autodefesa através do porte de armas recebem grande adesão no país
Para os povos indígenas, seus direitos, seus projetos de vida e de futuro, o governo de Jair Bolsonaro representa um grave perigo, porque propagou o ódio, o preconceito, a violência e desdenhou das histórias, das lutas e da autonomia indígena. O governo eleito não admite que na Constituição Federal (que ele jurou defender) estejam expressos os direitos à diferença étnica, a terra demarcada e o de serem, os povos, sujeitos de direitos. O presidente finge desconhecer que as terras indígenas são bens da União destinados ao usufruto exclusivo dos povos, que a demarcação administrativa de uma área não cria direito, apenas reconhece um direito preexistente, ou seja, explicita um direito originário, inalienável, e a Constituição é que determina que as terras indígenas são indisponíveis e que os direitos sobre elas são imprescritíveis. Propaga as teses da Ditadura Militar quando dizia haver terras demais para os índios.
O discurso depreciativo direcionado aos povos é, em essência, uma defesa daqueles que, ao longo da história, exploram as terras e oprimem as pessoas que delas tiram o seu sustento. Essa prática discursiva pode desencadear o absurdo sentimento de insegurança jurídica e de descrédito no governo. Neste contexto, os povos precisarão – mais do que nunca – de um sistema de justiça que seja honesto e coerente com as normas constitucionais e que transmita credibilidade a partir de suas decisões. Igualmente se requer um Ministério Público Federal atuante, fiscal da lei e defensor dos povos, de seus modos de ser e de viver e assegurar a defesa da demarcação e garantia das terras. Espera-se, por fim, que as políticas públicas em saúde, educação e atividades produtivas ocorram de modo permanente e de respeito às culturas, costumes, crenças e tradições e, por fim que os órgãos de assistência, proteção e fiscalização sejam fortalecidos e não desmantelados.
No campo internacional, teremos os olhos do mundo dirigidos ao país. É grande a preocupação da opinião pública e dos governantes com a preservação das florestas, especialmente a Amazônica, e com as comunidades e povos que nelas sobrevivem, e agora , encontram-se ainda mais ameaçada pelo grupo que chega ao poder. É fundamental que as entidades de apoio e as comunidades indígenas invistam de forma permanente em ações de visibilidade internacional, conclamando aos organismos de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente o envio de observadores estrangeiros ao país. Será fundamental que se busque constranger e denunciar esse grupo de alucinados com o poder no campo internacional.