Por Jucelene Rocha | Jubileu Sul Brasil*
Em entrevista para a Revista Sinergia, a pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco e coordenadora de incidência da ONG Habitat para a Humanidade Brasil, Raquel Ludermir, fala sobre o aumento do déficit habitacional entre as mulheres e a relação dessa situação com a violência doméstica.
A pesquisadora destaca que esse problema social e urbano invisibilizado afeta uma em cada quatro mulheres no Brasil e na América Latina e é mais grave para mulheres não brancas, empobrecidas e vitimadas principalmente pelas dívidas sociais históricas com a população negra no Brasil.
A feminilização do déficit habitacional é um fenômeno novo? O que podemos destacar sobre essa realidade?
Raquel Ludermir – Primeiro eu acho que é importante entender o que é o déficit habitacional. Ele inclui o que a gente chama de ônus excessivo do aluguel, que são aquelas pessoas que vivem de aluguel, mas tem uma renda tão baixa, em relação ao aluguel, que pagar o aluguel no final do mês pode significar uma situação de insegurança alimentar. Ou seja, são aquelas famílias que escolhem se comem ou se pagam aluguel no final do mês. Tem também a situação de coabitação que são aquelas famílias que moram de favor na casa dos outros por não ter outra alternativa e também aquelas pessoas que moram em domicílios muito improvisados.
Então, hoje pela primeira vez a gente tem dados oficiais suficientes para afirmar com muita segurança que o déficit habitacional é feminino, mas isso não é exatamente um fenômeno novo. O único problema é que a gente sempre soube que o déficit era muito maior entre as mulheres, principalmente as mulheres chefes de família, mas a gente não tinha dados oficiais suficientes para afirmar com segurança e, somente agora, a Fundação João Pinheiro oferece esses dados e a gente realmente consegue entender.
Outro ponto que é importante destacar é também com base nos dados da João Pinheiro. Desde 2016 até 2019, enquanto a média nacional se mantém, o déficit entre as mulheres aumenta e o déficit entre os homens diminui. O que significa dizer que as mulheres estão , indubitavelmente, em uma situação de vulnerabilidade habitacional muito mais severa do que os homens.
Qual o perfil das mulheres que experimentam mais fortemente as consequências de viver em moradias precárias, ocupações ou aluguel? O que geralmente leva as mulheres a essa realidade?
Raquel Ludermir – São principalmente aquelas mulheres não brancas, as mulheres negras, pretas e pardas e as mulheres empobrecidas por processos históricos que a gente bem conhece aqui no Brasil.
Por não ter alternativa de moradia, essas mulheres terminam vivendo em situações muito precárias, domicílios improvisados ou então, moram de favor com familiares ou com vizinhos, parentes. Em última instância, se juntam a ocupações e a movimentos sociais de moradia para suprir essa necessidade básica e isso tem uma relação direta com as lacunas e as limitações dos programas habitacionais no momento.
Qual a relação presente entre a violência doméstica e o déficit habitacional?
Raquel Ludermir – Para entender melhor a relação entre o déficit habitacional e a violência doméstica basta a gente pensar: onde as mulheres que saem de relacionamentos abusivos vão morar? Muitas mulheres não saem de relacionamentos abusivos por não ter alternativa de moradia. Só para vocês terem uma ideia, hoje existem apenas cerca de 80 casas abrigo no país inteiro. E isso realmente é muito aquém da demanda.
Além disso, essas vagas das casas abrigo são elegíveis, elas são abertas somente para as mulheres que já estão em risco iminente de morte, ou seja, as mulheres que estão prestes a sofrer um feminicídio. Só nesse nível de vulnerabilidade elas recebem apoio e têm a possibilidade de acessar o serviço de abrigamento.
Não existe, por exemplo, a noção de que a moradia pode ser uma estratégia para prevenção dos casos mais graves de violência. É muito importante pensar que a ausência de programas habitacionais e inclusive da rede de abrigamento dessas mulheres termina retroalimentando o ciclo de violência doméstica sofrido por essas mulheres.
A questão da feminilização do déficit habitacional tem sido levada em consideração nas poucas políticas públicas que temos nesse setor? O que poderia ser feito nessa direção?
Raquel Ludermir – No Brasil existe desde 2005 uma lei federal que exige que todos os programas habitacionais, seja para regularização fundiária, seja para provisão de moradias ou a locação de lotes urbanizados, priorize as mulheres.
Mas o que se vê na prática, por exemplo, são programas de regularização fundiária fazendo a titulação de terrenos ou mesmo de unidades habitacionais de casas no nome do casal, ao invés de fazer esse registro apenas no nome da mulher. Isso termina enfraquecendo a intenção da lei e a medida afirmativa de priorização das mulheres nos programas habitacionais.
Outra coisa que é muito importante a gente pensar é que quando a mulher é dona da casa e está sujeita a situação de violência, às vezes, ela não consegue tirar o agressor de dentro de casa, porque existem medidas protetivas que são ineficientes.
Uma vez que há a predominância das mulheres no cenário do déficit habitacional elas também estão mais envolvidas com as lutas por moradia? Como você percebe a atuação das mulheres nesse campo?
Raquel Ludermir – O fato do déficit habitacional no Brasil ser feminino e as mulheres estarem em situação de muito mais vulnerabilidade, no que diz respeito à sua moradia, termina levando muitas e muitas mulheres às ocupações urbanas e às disputas pelo território mesmo, então, sem sombra de dúvida, as mulheres estão na linha de frente nas resistências e nos processos de ocupação e transformação dos territórios hoje.
Uma coisa muito importante atentar é que, mesmo sendo lideranças comunitárias, mesmo sendo pessoas de referência nos seus territórios, muitas vezes, as mulheres continuam enfrentando barreiras para acessar os níveis mais estratégicos e de tomada de decisão dentro dos seus próprios coletivos, dentro dos seus próprios movimentos e até mesmo dentro dos espaços institucionalizados de gestão democrática e participação nas tomadas de decisão sobre as políticas urbanas.
É sempre importante considerar que existe, às vezes, um processo de silenciar as mulheres que porventura cheguem nesses espaços mais estratégicos e de tomada de decisão. Então, momentos em que mulheres são ignoradas, silenciadas e até mesmo desrespeitadas no seu espaço de fala.
Com o cenário político que temos, onde predomina a cultura do machismo, a hegemonia do patriarcado, o que podemos esperar para o futuro das mulheres no que diz respeito à questão da moradia e o direito à cidade? Há reações positivas nesse enfrentamento?
Raquel Ludermir – As mulheres hoje são peças chave nos processos de transformação dos seus territórios para pensar e construir soluções alternativas, então sim, eu acho que existe esperança e isso vem muito de um processo de diversas iniciativas que se somam para fortalecer, sempre que possível, o papel e a voz das mulheres nos espaços de discussão e debate sobre o direito à cidade, sobre o direito à moradia.
É chave aqui a gente falar também no que chamamos de empoderamento legal, para que as mulheres conheçam os seus direitos e que estejam aptas a identificar violações desses direitos e acionar mecanismos de exigibilidade desses direitos.
Muitas mulheres ainda não conhecem o que é a violência patrimonial, pode falar sobre essa realidade?
Raquel Ludermir – Sempre que a gente pensar no direito à moradia e na situação das mulheres, eu acho importante a gente falar também da violência patrimonial contra a mulher. O que é isso? A violência patrimonial é um dos cinco tipos de violência doméstica contra a mulher que já estão previstos na lei Maria da Penha.
Então, existe a violência física, a violência moral, a violência sexual, a violência psicológica e a violência patrimonial. Então, a violência patrimonial muitas vezes ela é entendida como quebrar celular, rasgar roupa, destruir objetos das mulheres, mas aqui eu chamo atenção para a casa, que muitas vezes é o principal, se não o único bem de muitas famílias.
Todas as vezes que as mulheres perdem seus bens em uma disputa que tem um caráter de desigualdade de gênero, ou seja, o homem acha que o dono é quem paga. As mulheres não conhecem os seus direitos de propriedade, o seu direito à metade dos bens. Todos os bens que forem adquiridos durante a união estável, são do casal e não de quem pagou por eles.
*A entrevista foi publicada originalmente na Revista Sinergia Popular, acesse todo conteúdo no link abaixo: