Texto: Paulo Victor Melo | Rede Jubileu Sul Brasil
“Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade”. Quando pronunciou essas palavras em junho de 2019, durante exposição na Cúpula Pan-Americana de Juízes, o papa Francisco sintetizava os problemas fundamentais do nosso tempo.
Dois anos depois, e com uma pandemia que já retirou mais de três milhões de vidas, as palavras do Papa Francisco são ainda mais necessárias. Tomemos a realidade brasileira.
Como garantir justiça num país que tem 11 novos bilionários enquanto 55% da população vive em insegurança alimentar? Como pensar em desenvolvimento num país em que 12,8% da população vive com menos de R$ 246 por mês? Como falar em democracia num país em que 20 milhões de adultos, crianças e idosos passam fome todos os dias?
Para Jardel Nunes, coordenador da Pastoral Operária, esses dados escancaram as consequências da lógica do modo de produção capitalista e de um Estado orientado aos interesses desse modelo. “Essa ofensiva do capital sobre o trabalho, o Estado e o meio ambiente já era crescente antes da pandemia, mas se agravou na última década com a resposta favorável do Estado ao capital, implementando medidas que retiram ou minimizam direitos, desfavorecendo a classe trabalhadora”.
Análise semelhante é feita por Carmela Zigoni, assessoria política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Em seu entendimento, esse quadro “revela que o projeto de exclusão dos mais vulneráveis está cada vez mais avançado” e evidencia o racismo estrutural, já que “as pessoas mais afetadas neste cenário são negras”.
O sociólogo Clemente Ganz Lúcio enfatiza que o aumento das desigualdades, especialmente a partir de 2016, resultam de políticas de precarização do trabalho e da diminuição da presença industrial na economia do país. “A saída e o fechamento de empresas, portanto, a perda de empregos de melhor qualidade no setor industrial, tem um reflexo muito negativo sobre toda a estrutura do mundo do trabalho”, avalia.
Alguns índices da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua, realizada pelo IBGE, confirmam o dito pelo sociólogo: 14,3% milhões de brasileiras e brasileiros estão desempregados; a taxa de desemprego no país está acima de 14%; aproximadamente 40% dos trabalhadores com empregos estão na informalidade; quase 6 milhões de pessoas estão “desalentadas”, ou seja, estão desempregadas, mas não buscaram trabalho porque não veem nem mesmo possibilidade de conseguir.
De acordo com Clemente, esses números demonstram a gravidade da crise sanitária, mas, acima de tudo, a situação de desigualdade socioeconômica que caracteriza o Brasil. “Com a pandemia, isto se agravou de maneira muito acentuada. Desemprego crescente, nível de inatividade e desalento muito alto e também a geração de postos de trabalho precarizados, jornadas extensas, baixos salários, péssimas condições de trabalho. Tudo isso contribuindo para que a desigualdade cresça no Brasil, para que a situação de pobreza e miséria volte a crescer”, aponta.
As vulnerabilidades que se entrecruzam
Numa espécie de “efeito avalanche”, este cenário sobre o trabalho, emprego e renda amplifica outras vulnerabilidades, a exemplo do aumento de despejos, remoções e reintegrações de posse.
Segundo levantamento do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), sem trabalho e sem auxílio emergencial, muitas famílias não conseguiram continuar pagando aluguel e, ao serem despejadas, procuraram ocupações precárias, tornando-se alvos de processos de reintegração de posse, remoções e ameaças.
Analisando especificamente a situação da Região Metropolitana de São Paulo, o estudo indicou que 2.726 famílias foram afetadas em 28 remoções e outras 7.141 famílias sofreram ameaça de remoção.
A perversidade do Governo Federal com a classe trabalhadora
Além de questões estruturais da formação do Brasil, a exemplo do racismo, citado por Carmela, importa ressaltar que todo este contexto é consequência direta de políticas estabelecidas pelo Governo Federal. Não há como esquecer, por exemplo, as afirmações do presidente da República , em agosto de 2019, de que “tudo o que é demais atrapalha. É tanto direito que os patrões, os empreendedores, contratam o mínimo possível e pagaram o mínimo possível” e que os trabalhadores deveriam escolher entre “menos direito e mais emprego ou todos os direitos e o desemprego”.
Indo além das suas próprias palavras, a realidade estimulada pelo presidente é ainda mais grave: menos direito e menos emprego. Aliada aos dados sobre desocupação no país, destacados no início deste texto, a edição das Medidas Provisórias 1.045 e 1.046, na semana em que o país registrou mais de 400 mil mortes por Covid-19, não deixa dúvidas a respeito disso.
Pela MP 1.045, publicada no Diário Oficial da União da última quarta (28), as empresas privadas podem reduzir a jornada de trabalho com redução de salário, em até 75%, e suspender os contratos trabalhistas, como forma de “evitar” demissões. Mesmo trabalhadoras gestantes podem ser impactadas por essas medidas, vale mencionar.
Já a Medida Provisória (MP) 1.046, editada no mesmo dia, flexibiliza regras trabalhistas referentes a direitos como férias, feriados, banco de horas e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Pela MP, as empresas podem, por exemplo, conceder férias coletivas sem necessidade de comunicação aos sindicatos da categoria; adiar o pagamento do FGTS; antecipar férias individuais, precisando notificar o trabalhador com antecedência de apenas 48 horas; podem antecipar ou utilizar feriados para compensar saldo em banco de horas.
Também pela MP 1.046, para “garantir a permanência do vínculo empregatício”, a celebração de acordos individuais entre empregadores e trabalhadores supera legislações trabalhistas.
Quais caminhos?
“Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos”. Se em 2019 o papa Francisco demarcava as contradições que caracterizam a sociedade atual, anos antes, em 2014, durante encontro com movimentos sociais populares de todo mundo, o pontífice anunciava a agenda central para a construção de um novo tipo de sociedade.
“Não é possível conceber um resultado diferente do que está aí sem a pauta da garantia dos direitos e da dignidade humana. Por isso, é preciso garantir a vida primeiro, depois o trabalho para combater a miséria e a fome, além de vacina, urgente para todos e todas e auxilio emergencial justo para quem necessita”, frisa Jardel Nunes, da Pastoral Operária.
Na mesma perspectiva, Carmela Zigoni, do Inesc, entende ser essencial um conjunto de medidas em diferentes áreas, como “revogação do teto de gastos, recomposição do orçamento para gastos sociais por meio de créditos extraordinários, garantia de um auxílio emergencial digno, de R$ 600 até o fim da pandemia, e investimentos em vacina, saneamento básico, transporte e educação de qualidade”.
Em sintonia com os caminhos apontados pelo papa Francisco e a partir dos desafios da realidade nacional e global, a 6ª Semana Social Brasileira, a Rede Jubileu Sul Brasil e Pastoral Operária, dentre outras, têm realizado uma série de iniciativas em torno do direito à vida, da democracia e do direito à terra, ao teto e ao trabalho.
Neste 1º de maio, sábado, às 19h30, acontece o segundo momento Ao Vivo “Mutirão pela Vida – por Trabalho e Democracia”, com transmissão ao vivo pelos canais da Rede Jubileu Sul Brasil e da Semana Social Brasileira no Facebook e no Youtube.